quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Ermitão

Acordava à hora que lhe conviesse, tomava banho ou não dependendo de o tempo estar quente ou frio e sua disposição permitir que o fizesse; podia comer um desjejum ou almoçar uma feijoada, o apetite e a vontade determinavam o cardápio fosse a hora que fosse. Desde adolescente Demerval desejava viver assim e seu sonho pôde tornar-se real com a morte dos pais durante uma pescaria no Pantanal.

Refeito da surpresa e dar dor da perda, permitiu-se conviver com a saudade na solidão e na liberdade com que sempre sonhara. A fortuna herdada foi aplicada em vários fundos e ações que ele administrava pela internet. Por meio da rede, fazia compras e pagava contas, estudava, passeava, mas evitava se comunicar com quem fosse e não lia jornais, assistia a filmes ou ouvia músicas. Tentava comprovar sua teoria de que poderiam haver ermitões urbanos no século 21.

Não saber o que acontecia no mundo, não ouvir as melodias e suas letras que já condenava pela pobreza poética antes do isolamento, não se preocupar com as modas e suas mortes aceleradas em nome da modernização social e da fortuna de quem diz o que cada cidadão tem que vestir, ouvir e pensar era o princípio de seu afastamento e a dita liberdade.

Trancou-se no apartamento depois de fazer um isolamento acústico para evitar os ruídos da metrópole. Na porta da frente, uma portinhola por onde seriam passadas as compras que faria à distância, além das contas de consumo de água, luz, gás, internet e condomínio, todas pagas em débito automático. Havia se livrado de qualquer contato direto com qualquer ser humano.

Não havia relógios, mesmo no computador. Nunca sabia se era dia ou noite, isso o permitia dormir, acordar e comer quando bem entendesse, sem os compromissos cronológicos incutidos em seu relógio biológico desde a mais primeira idade, quando lhe diziam a hora em que deveria mamar ou dormir. Ele ditava suas regras e a única era não ter regras.

Bem tentou desprender-se de outros hábitos oriundos da educação tradicional que tivera e que questionara na juventude. Barbear-se, aparar as unhas, cortar cabelos, tomar banho, lavar louça... O homem não precisava dessas coisas em seus primórdios, não eram, portanto, funções naturais, mas invencionices em nome do progresso, do bem estar e outras baboseiras que negava.

Por algum tempo – ainda tinha incutida nos instintos a noção de tempo -, algo em torno de dois meses, manteve-se sujo, barba crescendo e o apartamento transformando-se num chiqueiro humano. Entendeu na prática as necessidades da higiene. Não estava se suportando ou ao local, percebeu que adoeceria ou os entulhos tomariam o espaço que deveria ser seu.

Faxinou-se e ao apartamento, dezenas de sacos e caixas despejados no corredor pela portinhola e muitos produtos de higiene pessoal e ambiental no sentido inverso, trazidos pelos entregadores do supermercado.

Gripou. Remédios deixados na portinhola pelo entregador da farmácia.

Recebeu pela portinhola cartões de Natal e aniversário e o comunicado da morte da tia Enalva. Respondeu a todos com flores on-line.

Dedicava-se a estudar filosofia. Escarafunchava sites e comprava livros. Aos poucos foi criando coragem de escrever os próprios textos aplaudindo ou desancando pensadores antigos e modernos. Veio a necessidade de mostrá-los e criou seu blog, sem sistema de comentários. Lia, escrevia e blogava. Tornara-se um produtor em grande escala de textos sobre a natureza humana como a vira antes e da qual se esquecia aos poucos.

Escrever sobre algo que não mais conhecia tornava-se um incômodo gradativo. Ele próprio não era mais referência de ser humano, tornara-se exemplar descartado. Seu nome, Demerval, já não fazia sentido. Se o nome é o primeiro diferencial de um ser humano dos outros seres humanos, de quem ele se diferenciava se era único? O que poderia falar de desejos, frustrações, perdas, amores, ódios se, sabe-se lá há quantos anos, não sentia nada disso? Seria válido escrever sobre o luto ou a alegria do parto se era apenas um teórico afastado de seu objeto?

Doloroso reconhecer que estava enganado desde os quatorze anos, embora pudesse ser reconhecida sua grandeza de espírito justamente por admitir o erro. Esteve tangenciando a depressão. Nenhum alento lhe traziam Sartre, Platão, Kant, Demócrito. Prazer algum lhe traziam Berkeley, Rousseau, Spinoza, Hegel e Schelling. Não conseguia criar, especular sobre a alma ou sua ausência, se achava o mais desautorizado homem a falar dos homens.

As janelas antirruídos e as paredes acolchoadas não evitavam a entrada dos trovões repetidos e fortes. As paredes e os móveis tremiam seguindo o ribombar que soava após outro e outro e mais um. Demerval lembrava-se vagamente do cheiro da chuva, seu tato tinha vaga memória da lama sob os pés, os olhos guardavam algo do brilho das gotas iguais e diferentes das que viam no chuveiro. Algo lhe recordava serem aqueles ruídos os sinais de temporal. Por dentro ele era tempestade.

Veio a vontade de rever as águas caírem e o medo de rever o mundo. Olhava os cabelos brancos no espelho que a mãe um dia fixara na parede oposta à Última Ceia e se perguntava como envelhecera sem perceber. Suas certezas foram pelo ralo com o último banho, não havia mais razão para esconder-se do mundo do qual, agora não tinha como negar, jamais estivera ausente. Engolia o orgulho que já não tinha razão de ser e só agora percebia ter sido o autor da sandice de jogar a vida fora em troca de filosofia barata produzida mais por teimosia do que por curiosidade científica ou comprovação indubitável de suas teses.

Assumiria diante do mundo que o desconhecia a derrota que se lhe dera. Vestiu-se com o esmero que suas roupas descoloridas permitiam, empertigou-se com o resto de amor próprio, abriu a porta do apartamento. Encontrou o corredor escuro. Nenhum ruído além dos trovões e pingos nas vidraças.

Apertou o botão do elevador, mas esse não acendeu. Estava morto. Talvez a tempestade tenha provocado um black-out. Desceria os doze andares pela escada.

A cada andar, o silêncio se repetia. Aquelas crianças que costumavam correr pelos corredores hoje seriam adultos e adultos não gritam por brincadeiras sérias, só por bobagens de adultos. Não perdera o vício de analisar os homens, mesmo sabendo-se errado em suas conclusões.

Descia imaginando quem encontraria dos velhos conhecidos, como a cidade havia crescido, embora já fosse gigantesca, como seria recebido pelo mundo que crescera sem ele.

A cada andar, mais escuro. Mais silêncio. Menos trovões. Quase nenhum ruído de chuva.

No térreo respirou fundo, abriu a porta que dava para o saguão do edifício e entrou tentando esconder o medo. Ninguém. Nenhum ruído humano, nenhuma luz. Apenas escuro e frio. Dirigiu-se à rua.

Na escuridão que se espalhava junto com a água e os relâmpagos, pôde ver o perfil dos edifícios onde antes haviam casas. Os postes apagados, nenhum carro, nenhuma alma viva ou mesmo fantasma. Estava só no deserto escondido pelo cobertor negro. Tentava rememorar os caminhos do bairro. Se não se enganava, na segunda esquina à direita veria a praça. A praça estava ali, mas não as árvores. Nos flashs da tempestade via troncos nus. Se a memória estava certa, do outro lado da praça estava o hospital público sempre com filas enormes, gente chorando, gemendo, reclamando, sofrendo, mas gente. O hospital estava lá, mas sem macas ocupadas, atendentes, pacientes, choros, gemidos ou gritos. Silêncio e frio.

No meio da praça o relógio marcava 6. Se fosse dia, estaria escurecendo, se fosse noite estaria clareando, mas era tudo escuro e o relógio funcionava. Estaria certo?

Onde mais ir? Ao metrô!

A escada rolante não rolava e o elevador não elevava nem baixava. Desceu as escadas tateando e onde sempre havia luz, nada havia, nem mesmo a luz. Silêncio e um ou outro pedaço de luz de relâmpago de vez em quando. Silêncio absoluto daqueles de doer os ouvidos e enlouquecer quem o ouve.

Andou por toda a noite que não acabava. Em uma lanchonete escancarada encontrou água e saquinhos de salgados. Na farmácia deserta, remédio para aliviar a cabeça que doía confusa. Na sapataria, tênis mais confortáveis e secos. Andou no frio breu até encontrar um hotel com camas limpas e postas, sem usuários. Descansou por horas, acordou ainda escuro e chuvoso, andou mais e mais. O tempo passava e o sol não vinha. Comia o que encontrava pelos bares, bebia, descansava e caminhava. Gritava pelas ruas, quebrava vitrines na esperança de ver policiais, só o eco respondia, quando havia eco.

Tornara-se o ermitão que sonhara poder ser sem ter com quem discutir suas teorias.

©Marcos Pontes

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