domingo, 21 de junho de 2009

Maloca Descoberta

Era um acontecimento festivo quando algum teco-teco ou helicóptero pousava naquela pista de piçarra cercada de mato. A molecada do povoado chegava ao campo antes do aparelho, avisada pelo barulho longínquo do motor, fácil de ser ouvido naquele silêncio espesso da floresta.

Em algumas das viagens os passageiros eram cientistas que se embrenhavam na floresta cheios de tralhas esquisitas, mochilas, redes de dormir e de pescar, fogareiros, armadilhas e uns troços que não conseguíamos identificar o que era ou pra que serviam. Vinham sempre acompanhados de um ou dois índios ou por um mateiro experiente.

Outras vezes, no lugar dos cientistas, vinham uns homens louros com suas calças pretas de tecido fino, gravatas vermelhas, camisas brancas de mangas curtas, sapatos lustrados e um livro preto que apresentavam como o livro da salvação das almas. Reuniam-se com os idosos e conversavam coisas ininteligíveis num português enrolado. As crianças os cercavam assuntando o que era dito ou gritado aos olhos fechados e seguido de aleluias e graças a Deus e outras coisas sem sentido como complementos das frases interrompidas.

De helicópteros vinham soldados e médicos, normalmente na manhã seguinte ou na seguinte à seguinte à Lua cheia. Os soldados sem fuzis ajudavam a consertar telhados e paredes, pintavam as paredes do barracão comunitário, colhiam palha para recobrir as palhoças ou ajudavam a reparar os cascos das canoas. Os médicos usavam um aparelho de três pontas e nome esquisito. Duas pontas eram enfiadas no ouvido lá dele e a terceira, com uma rodela preta, encostavam no peito das pessoas, ou nas costas, e mandavam respirar fundo. Mandavam abrir a boca e mostrar a língua dizendo “aaaaa”. Faziam umas perguntas estranhas para as mães: “como são as fezes do bebê?”, “ele tosse à noite?”, “a menina reclama de dor de cabeça?”, “quantos dedos você está vendo?”. Ser doutor é fazer isso? Coisa mais besta!

Depois davam pílulas, vidros de beberagem azeda e obrigavam os mais velhos a nos darem outra dose à noitinha, antes de irmos para a rede. Pior quando enfiavam agulhas na bunda ou no braço e empurravam para dentro da gente uma água de dentro de tubos de vidro. Diziam que era remédio, como se já não tivéssemos remédios para tudo no meio do mato.

Mesmo sabendo que íamos sofrer a tortura de ouvir gente gritando coisas que não entendíamos ou seríamos obrigados a engolir alguma coisa amarga ou espetados por agulhas, não resistíamos à tentação de vermos aquelas máquinas barulhentas descerem como se fossem se espatifar no solo, depois deslizarem levantando poeira, ou os helicópteros abrindo um redemoinho de pó vermelho no meio do mato, descer devagarzinho como se fosse um beija-flor rajado. Era diversão para quebrar a rotina.

Um dia ouvimos o barulho ainda longe, corremos para a pista. Podíamos estar enganados, mas não era dia de vir nem médico, nem louro alto e nem cientistas, se bem que os cientistas não tinham uma programação certinha. O barulho também era diferente, não parecia o barulho dos dois motores do avião dos cientistas ou o motor mais fraquinho dos homem da bíblia, muito menos o dos helicópteros.

Nós todos ladeando a pista quando vemos um avião de apenas um motor aparecer acima das árvores. Balança de um lado para o outro, embica em direção à pista, vem meio de lado como gavião na ventania. Não era azul como o dos moços louros e nem verde como o dos cientistas, tinha listras verdes no rabo e nas asas. O piloto também parecia mais estabanado. A roda bateu com força no chão, quicou, pisou de novo com força e logo começou a frear, não era aquele pouso longo e suave que a gente estava acostumado.

O piloto não manobrou para a frente do barracão, como os outro faziam, foi lá para o fim da pista, longe da gente. Ficamos parados esperando ele voltar, mas ele não voltou. De longe vimos descerem três homens que começaram a tirar as coisas da barriga do bicho, cada um deles com uma espingarda na bandoleira. Ficamos olhando um para a cara do outro esperando que alguém tomasse a iniciativa de correr até lá e saber as novidades. Não sei quem foi o primeiro, quando vi já tinham três correndo à minha frente e eu os segui.

Já estávamos no meio da pista quando vimos o avião dar a volta, apontar o nariz na direção da gente e começar a girar as hélices com força, como faz quando vai decolar. O piloto não devia estar nos vendo, acelerou com tudo em nossa direção. Mal tivemos tempo de nos jogar de lado, gritando feito bando de macacos que vêem onça. Tirando os arranhões do peito e nos cotovelos, ninguém se machucou.

Sem entender o que havia acontecido, passamos algum tempo olhando uns para as caras abestalhadas dos outros, cada qual contando para onde correra para se livrar de ser estraçalhado pelo teco-teco. Os pais vinham correndo ao nosso encontro, as mães gritando, até uns gritos de “aleluia!” eu ouvi.

Um dos nossos jovens adultos, mais calmos os ânimos, perguntou para onde foram os três homens desembarcados. Nos viramos todos em direção ao final da pista onde os víramos pela última vez. Haviam se embrenhado.

De volta às casas, um ar pesado, cada um especulando o que fora aquilo sem qualquer teoria definitiva, quando um dos mais velhos chamou três homens mais novos, dois solteiros e um casado, e os mandou ir atrás dos homens embrenhados na floresta para saberem o que estava acontecendo.

Não havia arma de fogo na aldeia, nossos homens caçavam e pescavam com zagaia e arco e flecha, usavam facão que os soldados trouxeram de presente e não tínhamos inimigos. Os moradores das aldeias vizinhas eram nossos amigos e costumávamos trocar carne, mandioca, farinha, peles, o que a floresta nos desse a mais. Não tínhamos necessidade de espingarda ou revólver. Além do mais, não tínhamos porque desconfiar das intenções daqueles homens, talvez não tenham nos visto, talvez tivessem pressa para ajudar algum cientista perdido na mata. Nós vimos os cientistas e soldados falarem com gente longe por meio de rádios. Talvez aqueles homens tenham falado com os cientistas que estavam havia dias na floresta e eles precisassem de ajuda. Se fosse assim, nós poderíamos ajudar.

Os homens saíram depois de comer. O sol estava no alto. Fomos atrás deles, eu e mais oito garotos, até a beira da pista. Os vimos dirigirem-se para o lugar onde os três homens de espingardas e mochilas desceram do avião. Vimos Andirá se acocorar e identificar o caminho dos estrangeiros. Apontou para uma pequena abertura no mato e seguiram os três dos nossos por ali.

Ainda ficamos um tempo especulando e aguardando, mas sabíamos que poderia demorar a volta dos homens. A espera foi ficando sem graça. Voltamos para a aldeia e para as brincadeiras.

Na boca da noite, como quase todos os dias, os adultos acenderam a fogueira na praça, sentaram-se em troncos e puseram-se a conversar. Estavam todos lá, entre nós os pais dos dois rapazes solteiros e a mulher do casado que foram atrás de notícias dos estrangeiros. Naquela noite não ouvimos estórias engraçadas e nem planos para o dia seguinte. Era muito silêncio só quebrado muito raramente por uma ou outra especulação sobre a demora do trio. Para nós, crianças, a noite não estava agradável. Naquele silêncio, o sono não demorou, fomos nos retirando aos poucos.

Acordei na manhã seguinte com o alvoroço vindo do barracão. O vozerio dos homens assustava mesmo sem entender o que diziam à distância. Saltei da rede num salto e corri até lá. O Sol ainda nem havia se levantado. Fui parado no caminho pela minha mãe. Ninguém pode entrar lá, me disse, é reunião só para os homens. Me virando, reparei que todas as mulheres estavam à porta de suas palhoças, algumas com bebês no colo, outras com ar de preocupação nos olhos, as mães de Andirá, Iraputã e Xambré formavam um grupo separado, conversando agitadas, tensas.

O vozerio dos homens e as conversas das mulheres eram em nossa língua nativa, que nós, crianças, sabíamos muito pouco. Não sei por que, mas de uns tempos para cá os adultos nos obrigavam a falar em português. Nossa língua se tornara um segredo só conhecido pelos mais velhos. Só entendíamos uma ou outra palavra, “floresta”, “armas”, “perigo”, “forasteiros”, perdidas no meio de expressões inteiras.

De repente o silêncio e uma cantoria masculina, solene, séria, em nheengatu. Uma cantiga antiga, dos tempos de nossos ancestrais, que falava de coragem e apoio que cada um de nós tem que dar ao outro.

Não demorou muito a cantoria. Cessou num ato, seguindo o silêncio, a saída de Mariú, Kaloré e Irajá, caras pintadas, borduna, arco, flecha e facão, à frente dos demais homens. O cortejo seguiu em direção à pista de pouso, nenhuma palavra, apenas o roçar de seus pés na terra nua. Tentei acompanhá-los, mas fui detido novamente pelas mãos da minha mãe. Os homens sumiram por trás da última casa para reaparecerem pouco depois sem os três paramentados.

O dia foi todo de tensão. Pouco se falava, apenas o essencial. As mulheres faziam suas tarefas de preparar a comida, serviam às famílias, depois sumiam para se reunirem com as mulheres das famílias dos seis homens que se encontravam em missão. Os homens comiam e voltavam para o barracão onde pitavam cachimbo e conversavam em voz baixa.

Mesmo as crianças que pouco entendiam o que se passava, entendiam que não era dia de brincar. Até tentamos nadar ou pegar algum peixe com as mãos, mas o espírito desanimador dos adultos nos contagiou. Preferimos compartilhar com eles a apreensão e a preocupação pelo sumiço dos seis homens.

Já o sol começava a despejar-se sobre as copas quando ouvimos um grito longínquo, depois outro e mais outro. Era Kaloré avisando da chegada. Aqueles gritos tiveram o efeito de um raio no meio da praça. Corremos todos, crianças e jovens, mais rápidos, à frente, seguidos dos homens, mulheres e velhos. Não sabíamos se ficávamos alegres ou mais nervosos, não havia certeza de quem voltava. O grito de Kaloré anunciava apenas sua chegada e de novidades.

Na luz vermelha do Sol filtrada pelas folhas víamos apenas um amontoado de corpos e pernas caminhando para cá. Paramos à beira da pista de pouso e esperamos o grupo se aproximar. Com as mãos amarradas por cipós, uns aos outros, no meio vinham os três estrangeiros. Não apresentavam ferimento aparente, apenas a vermelhidão do que poderia ser um tabefe na face esquerda de cada um, roupas rasgadas, um deles com bota em apenas um dos pés, e muito suados. Ladeando-os vinham Kaloré, Mariú e Irajá.

A um sinal do homem mais velho de nós, os estrangeiros foram levados ao centro da praça. As crianças gritando insultos e as mulheres pedidos para que devolvessem nossos homens. Os homens da aldeia emitiam ordem graves, curtas e que não admitiam desobediência para que os prisioneiros andassem, parassem, calassem.

Nosso homem mais idoso, borduna na mão apontada para o peito do homem mais velho deles, perguntou onde estavam Iraputã, Andirá e Xapré. O homem disse que não sabia quem eram. Nosso velho insistiu, o homem continuou negando. As vozes foram se exaltando, nosso velho inquiria e o homem negava, os outros dois calados, olhos arregalados.

Os velhos se afastaram do grupo, confabularam em sussurros em nossa língua nativa, voltaram para o grupo sob nossos olhares curiosos, excitados e nervosos. O mais velho mandou que separassem os homens, cada um deveria ser levado para trás de uma das palhoças, uma afastada da outra, de forma que nenhum poderia ver ou ouvir os outros, a não ser que gritassem.

A noite caiu e nós, crianças e mulheres, das portas de nossas palhoças, víamos os velhos indo e voltando de um prisioneiro a outro por toda a noite. Atravessavam a praça, conversavam com um dos três homens, voltavam a atravessar a praça e iam onde estava o segundo e isso se repetia incontáveis vezes.

Um dos homens estava sendo vigiado por três dos nossos rapazes bem atrás de nossa choça. Quando os idosos vinham para cá, eu entrava em casa e ia lá para o fundo, encostava o ouvido numa das frestas entre as tábuas da parede e tentava diminuir até o som do coração para ouvir melhor o que diziam.

O velho perguntava sempre a mesma coisa, onde estavam nossos rapazes, e o homem negava, chorava, dizia “juro por Deus”, pedia água que lhe era negada, pedia comida que também não era dada. Depois de três ou quatro insistências, os velhos o abandonavam com os vigias e iam em direção a outro grupo escondido atrás de outra casa.

Talvez para deixar os prisioneiros famintos e sedentos ainda mais vulneráveis, os velho

inquisidores passaram a fazer as perguntas enquanto comiam uma capivara dourada no fogo, carne assada cheirosa, em plena madrugada, mesmo assim os homens não falavam.

O céu já começava a mesclar seu azul com o amarelo do Sol nascente, quando os homens foram trazidos para o centro da praça. Os idosos discutiam a um canto, só víamos seus gestos, nem murmúrios chegavam aos nossos ouvidos. De repente o grupo desfez-se e todos se aproximaram dos três homens do avião. Foi ordenado para que os cipós que os amarravam fossem cortados. Mulheres trouxeram caldo de capivara em cuias e beiju enrolados em folhas. Outra trouxe uma panela de barro com água.

Comida e bebida foram oferecidas aos prisioneiros que estavam deixando de ser prisioneiros. Comeram meio tímidos a princípio e vorazes depois de perceberem que era uma oferta franca.

Saciadas fome e sede, os homens foram libertados. Não houve pedido de desculpas, apenas a admissão de que fora cometido um erro de julgamento dos nossos homens que acharam que os três primeiros rapazes a se embrenharem haviam sido presos ou mortos pelos estrangeiros. Como jamais alguém resistira a interrogatório tão demorado e cruel, nossos velhos acreditaram na inocência dos três homens e os libertaram alimentados e com carne, farinha, mandioca e beiju. Esse era nosso pedido de desculpas.

Ficava, porém, a pergunta inicial: Onde estavam Xambré, Andirá e Iraputã? Eram jovens, mas experientes, conheciam cada pedaço da mata e seus segredos. Teriam sido encantados por Iara ou engolidos por Boiúna?

Logo se formaram grupos de voluntários para irem em busca dos rapazes. Cada um queria demonstrar sua solidariedade e coragem. Os velhos conselheiros tiveram alguma dificuldade em organizar os grupos de três que se revezariam nas buscas.

Mal os homens sumiram depois das casas, quase correndo para saírem logo dali, os três primeiros rapazes seguiram o mesmo curso. Foram muitos dias de buscas. Os trabalhos de plantar e caçar estavam comprometidos, sempre faltavam seis homens para o serviço. Ou estavam no mato ou descansando depois de dois dias de missão.

Os relatos eram sempre os mesmos, não havia rastro, nenhum sinal sequer das penas da pulseira que Xambré carregava ou das pinturas de urucum de Andirá em algum pedaço de pau. Havia uma ou outra pista de que eles haviam pisado numa beira de água, mas esses sinais iam sumindo dia após dia, já desaparecidos de vez, e acabavam no nada, numa clareira sem mato, pouco mais de três metros de diâmetro.

Os velhos determinaram o fim das buscas, algum bicho maior e mais feroz que eles havia comido os três e sumido para sempre. Melhor ninguém mais ir para aqueles lados. As caçadas só aconteceriam para o outro lado, a pesca no rio mirim do lado do Sol nascente, não mais para os lados da lagoa. Se os três homens fossem comidos para lá, problema deles.

Passaram-se alguns dias e os três homens reapareceram lá no final da pista de pouso. Não traziam suas tralhas, apenas as espingardas. Não se aproximaram. Eu e mais os meninos que brincavam com os macacos nas árvores da margem da pista, nos escondemos no mato e ficamos espiando. Tínhamos medo daqueles homens que poderiam ter sumido com nossos rapazes e tinham armas. Eles poderiam querer vingança depois do que passaram. Um de nós deveria ir avisar o pessoal da aldeia, mas estávamos tão temerosos, que ninguém arriscou se mostrar.

Nós escondidos no mato de olho neles e eles sentados no fim da pista fumando e olhando o céu. Não demorou para que entendêssemos porque. O som começou como um zumbido, longe e se aproximando. Parece que ouvimos antes deles a chegada do avião. Só quando o aparelho já se mostrava no alto do início da pista é que eles se levantaram e colocaram-se à espera.

O piloto vez exatamente igual ao que fizera da primeira vez, um pouso duro com o avião quicando na piçarra, depois indo até o final da pista, dando meia volta e parando. Desceram três homens que conversaram rapidamente com os outros três. Os que vieram do mato entraram no avião e os que chegaram agora se meteram na floresta.

Como chegou, o avião se foi, rápido e barulhento. A poeira logo assentou, sinal de que vinha chuva, e tudo voltou à calma de antes.

Quando saímos do mato, os homens e mulheres da aldeia começavam a chegar. Não viram o que havia acontecido, apenas o rabo do avião sumindo na primeira nuvem baixa.

Na aldeia os velhos nos pediram que contássemos o que acontecera em volta do fogo no barracão. Nas palhas os primeiros pingos grossos da chuva que demorou três dias e três noites.

Na manhã do quarto dia chegaram os dois helicópteros verdes com soldados e médicos. Nos traziam remédios amargos e a alegria da barulheira dos motores.

Na hora de comer, dois médicos e um outro homem que trazia umas estrelas douradas na camisa comeram com nossos velhos, como sempre faziam, enquanto os soldados e outros médicos se reuniam numa barraca de pano que eles montavam à beira da pista e com uma cozinha com panelas de ferro e lenha. Tiravam a comida de latas e vidros que depois deixavam jogados por ali. Nós recolhíamos tudo e enterrávamos desde o dia em que eu e mais dois meninos nos ferimos enquanto brincávamos com aquilo.

Na palhoça onde os velhos comiam todos os dias, a conversa não foi tão solta e divertida como sempre. Percebíamos que nossos idosos contavam aos militares sobre a chegada dos estrangeiros e o sumiço dos nossos rapazes. Os homens do Exército assumiram um ar sério e disseram que comunicariam os seus chefes daquilo. Prometiam mandar gente e fazer uma busca.

Não adiantou a recomendação de que poderia haver boiúna do lado de lá, que soldados poderiam também ser engolidos. O homem de verde e estrelas douradas disse que não se preocupassem, os soldados estariam preparados.

Terminado o dia, os helicópteros de volta ao seu lugar, tudo voltou ao normal, até que depois do almoço do dia seguinte ouvimos de novo o barulho do avião dos homens do meio do mato. Corremos para nosso esconderijo sob as árvores e esperamos a aterrissagem, mas isso não aconteceu. O avião passou baixinho sobre a pista, só que de atravessado, e sumiu sobre as árvores na direção em que os homens haviam entrado na floresta. Não demorou, novo sobrevoo na mesma direção. De primeira nós achamos que era outro avião seguindo o primeiro, depois vimos que era o mesmo que deveria ter dado a volta na mata e voltado pelo mesmo canto, só que voando mais alto. Antes dele sumir na lonjura, ainda vimos cair alguma coisa de dentro dele. Será que algum homem tinha se jogado do avião em voo?

Dessa vez os adultos chegaram a tempo e viram o ocorrido. Um deles disse que os homens de dentro do avião haviam jogado comida ou redes para os que estavam no chão. Kaloré confirmou que era justamente daqueles lados que estava o acampamento dos homens, às margens do igarapé, onde eles haviam construído um tapiri e faziam canoa. A curiosidade de ir lá ver o que estava acontecendo era grande, mas o alerta para a possibilidade de cobra-grande e a proibição dos idosos, além do medo inconfessável, eram freio. Talvez os soldados com suas espingardas de muitos tiros, quando viessem, conseguissem matar a cobra grande e contar o que está havendo da tapera dos estrangeiros.

No segundo dia chegaram três helicópteros cheios de soldados amados. Não vinham em visita de cortesia e nem adentraram a aldeia. Dirigiram-se apressados em duas filas para a picada aberta pelos homens do teco-teco. Aos poucos, em silêncio, comunicando-se por gestos, os soldados eram engolidos pela escuridão do verde. Ficaram dois homens em cada helicóptero, os pilotos. Um daqueles homens louros que vinham de vez em quando me ensinou a contar até vinte. Eu contei vinte soldados, aí comecei a contar de novo e contei mais seis soldados e mais os seis pilotos. Nunca tinham vindo tantos de uma vez.

Nossos homens, mulheres, velhos e crianças ficaram amontoados na saída da aldeia, os trabalhos parados, caça moqueando sozinha, mandioca azedando, bananas sem vigias para os macacos. Todos esperando o resultado daquela ação. O silêncio cortado apenas pelo farfalhar que vinha da matas, um piado ou outro ou o grito de macaco afoito. Mas esse silêncio foi rompido pelo leve zunido, longínquo. Nossos ouvidos diziam que era o avião dos homens da floresta. Os pilotos vistoriavam suas máquinas sob os capacetes enormes e não ouviam o que nós ouvíamos.

Olhávamos alternadamente para os pilotos e para o céu na esperança que eles vissem ou ouvissem o que já ouvíamos, mas eles não demonstravam qualquer reação ao zunido. Não agüentando a surdez dos pilotos, Itaji saiu correndo e gritando “eles vêm chegando! Eles vêm chegando!”. O piloto mais próximo, pego de surpresa, virou-se assustado já sacando a pistola. Itaji, que tinha certeza que os primeiros homens do avião haviam matado seu filho Andirá, mesmo que os idosos dissessem que não, via nos soldados a oportunidade de matar os invasores e saber que fim deram ao seu filho.

Vendo tratar-se de uma mulher desarmada, o piloto guardou a arma, os outros cinco já se aproximavam. Antes que perguntassem a Itaji quem vinha vindo, o avião despontou sobre nossas cabeças, vindo da mesma direção dos dois últimos voos.

O piloto soltou Itaji e correu para seu helicóptero, um segundo piloto sentou na frente junto com ele e um terceiro sentou no banco de trás, segurando a espingarda de muitos tiros fixa por um pé de ferro. A hélice de cima foi ligada, Itaji voltou com medo de ser cortada, gritando “peguem eles! Peguem eles! Eles mataram Andirá!”. Diferentemente das outras vezes, o helicóptero levantou rápido, não na vertical, mas já na direção de por onde sumira o aviãozinho. Desapareceram os dois, deixando o ruído que se afastava rápido.

Apagou-se o som dos motores, surgiram sons de estalos lá no meio do mato. Sons estranhos como troncos quebrando... Não. Como estalar de dentes de anta... Não exatamente. Sons rápidos, tum, tum, tum, como batidas compassadas em tambor. Muitos tambores, muitos barulhos numa sequência que lembrava o matraquear de macacos no cio.

Assustados, nos enfiamos nos matos, subimos em árvores, escondemos as mulheres e os velhos na vegetação. Desaparecemos como queixada ao ver pintada, rápido, sem ruído e sem rastro. Ficamos imóveis em nossos esconderijos esperando o matraquear parar.

Parou, mas não nos movemos. Os pilotos voltaram para seus lugares atrás dos vidros, tão apreensivos quanto nós, olhos fixos na entrada da picada. Falavam-se por meio dos rádios em seus capacetes, como o Holanda, soldado que sempre vinha com os médicos, havia me mostrado. De longe víamos seus lábios movendo-se. Suas mãos estavam segurando aquelas marchas como eles sempre seguravam para dirigir o helicóptero. Nos perguntávamos se eles voariam deixando os outros na mata como fizera o teco-teco com os outros homens, mas eles não ligavam os motores.

O tempo passava e nada acontecia. Os pilotos, lentamente, largavam os comandos, desamarravam-se das cadeiras, desciam dos helicópteros, mostravam tranquilidade, faziam uma rodinha de conversa, acendiam seus cigarros. A tranquilidade deles nos deu tranquilidade. Aos poucos fomos saindo de nossas locas. Mas não voltamos para a aldeia entregue às mutucas. Nos reagrupamos à sombra das árvores à margem da pista.

Foi muito tempo ali vendo o nada passar diante de nós. Já começávamos a nos inquietas e pensar em voltar a nossos afazeres, talvez nos banhar no rio, quando surgiram os primeiros soldados saindo do caminho. Os da frente traziam as mochilas dos estrangeiros, os outros vinham trazendo outras bugingangas: espingardas, fogareiro, terçados, sacos, panelas... Doze soldados, dispostos quatro a quatro, traziam sacos pretos enormes, com algo dentro, parecia caça. Pelo tamanho talvez fosse sucuri, ou onça, talvez anta ou capivara... Não tinha como saber.

Contei os soldados, nenhum ficara por lá. Os quatro últimos traziam uma espécie de rede com paus do lado. Tinha alguém deitado naquela rede de pano branco que, à distância, não distinguíamos quem era. Do meio do nosso grupo saiu Juacema gritando o nome do filho “Iraputã! Iraputã!”, corria com os braços abertos em direção ao homem deitado na rede.

Os soldados reuniram entre os helicópteros o que trouxeram do acampamento dos três homens. Nossos velhos se aproximaram para saber do que se tratava. Aquele que parecia ser o chefe dos soldados abria os sacos e mostrava outros sacos, só que de uma espécie de vidro que dava pra dobrar, cheio de farinha. Mas não era farinha, dizia o chefe dos soldados, era uma farinha feita de folha de epadú que matava e que era proibida. Aqueles homens recebiam aquela farinha do avião que atirava em pacotes na mata, depois transportavam de canoa rio Uapés abaixo até Barcelos, uma aldeia lá deles, os soldados e os estrangeiros.

Depois o homem abriu os sacos pretos. Dentro estavam os três homens que desceram por último do teco-teco, mas que os adultos não haviam visto, por isso fomos chamados, as crianças, para confirmarmos se eram eles mesmos. Eram. Estavam mortos com os olhos abertos.

Os soldados foram subindo no helicóptero e colocando as coisas catadas no acampamento dos homens da farinha que mata. Arrumaram os sacos com os homens dentro, um em cima do outro, em um dos helicópteros. Já carregado de tralhas e soldados, o helicóptero foi embora. Os demais homens ficaram esperando voltar o helicóptero que saíra atrás do aviãozinho.

As atenções nossas estavam divididas. Mulheres e velhos foram cuidar de Iraputã e assuntar sobre o paradeiro de Andirá e Xambré; os jovens e crianças espiavam a arrumação dos soldados.

Já era tarde, quase noite, quando o terceiro helicóptero voltou. O piloto desceu e nós o ouvimos falar para o chefe deles que não tinha combustível para seguir ainda hoje, que ficaria ali aguardando ajuda. Não foi embora e nenhum mais foi. Ficaram todos. Montaram suas cabanas de pano verde, improvisaram uma cozinha e acamparam ali.

Nós fomos levados à força por nossas mães para também dormirmos, não tinha porque ficarmos acordados a noite inteira.

Porque fomos dormir tarde, não consegui acordar cedo. Despertei com o barulho do motor dos helicópteros se preparando para irem embora. Saltei da rede já correndo e disparei pelo caminho até a pista de pouso. Por pouco não perdi o espetáculo da decolagem. Os soldados subiam, alguns acenavam com a mão, outros faziam cara de mau. Levavam suas barracas e deixavam suas latas e garrafas para enterrarmos.

Eles sumiram no horizonte e oito dos nossos rapazes se internavam na floresta pelo caminho que levava ao esconderijo dos bandidos. Iraputã, mesmo com poucas forças por ter ficado amarrado por tanto tempo e fazendo trabalho pesado enquanto recebia açoites, acompanhava o grupo, os guiaria até o local onde foram enterrados os dois companheiros de aventura.



Marcos Pontes
MyFreeCopyright.com Registered & Protected

3 comentários:

  1. Gostei do conto. No silêncio da floresta, Andirá descobre a trilha e se perde. A droga agita a aldeia e o final é de fazer inveja. Se em nossas cidades o tráfico fosse exterminado assim, seríamos mais felizes.
    Gostei muito de como vc pensou com a cabeça do menino: saber contar até vinte, o vidro -plástico- que dobrava;))
    enfim, Marcos você é um rescritor completo: contista, cronista, capaz de escrever bons textos jornalísticos e um grande poeta.
    Mais interessante, não sei se foi proposital, é que a Maloca descoberta veio depois do comércio no Pelô, onde vc mostra as mazelas de outros dois meninos - só que no Pelô o silêncio é da morte e não da mata;))
    Gostei de reler o Pelô depois deste. eles fazem um belo par . Servem pra discutirmos muitos problemas;)

    ResponderExcluir
  2. Marcos,
    está muito bom o texto. Você é um escritor. Vá em frente.
    abração

    ResponderExcluir

Se gostou, leia os demais. Se não, sinto muito, fiz o que pude.