segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Passado é Coisa do Passado

- Amor, olha essa foto.
- Onde foi isso?
- Não lembra?
- Não.
- Amor! Foi naquela excursão à serra gaúcha!
- Ah... Quando foi isso?
- Não acredito! Tá tirando com minha cara?
- Que é isso, meu bem? Eu não lembro, só isso.
- Nosso primeiro ano de casamento, Astrogildo. Como pode esquecer isso?
- Se estamos no sétimo, é lógico que tivemos o primeiro, mas também tivemos mais seis. E foram muito bons, não foram?
- Vai me dizer que não se lembra disso também...
- Ora, amor...
- Lembra onde comemoramos o segundo?
- Fortaleza?
- Fortaleza? Esse foi o quarto!
- Chapada Diamantina.
- Nunca fomos à Chapada Diamantina! Tá louco?
- Ih! Então, não lembro.
- Manaus, Astrogildo! Manaus!
- Ah, foi...
- Vai dizer que não lembra...
- Lembro de um calor de sauna e muita água.
- E fomos com quem?
- Com o Clodoaldo?
- Clodoaldo? Que mané Clodoaldo?
- Ah, é! Não te apresentei o Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Quem é Clodoaldo?
- Sei lá! Você que falou nesse tal Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Você tá bêbado, Astrogildo? Quem é Clodoaldo?
- Sabedeus. Não conheço nenhum Clodoaldo, Suméria.
- E como é que você perguntou se fomos a Manaus com o Clodoaldo?
- Chutei, ué.
- Eu tô casada há sete anos com um maluco e não sabia.
- Com quem fomos a Manaus em nosso terceiro aniversário?
- Segundo!
- Segundo? Quem é segundo?
- Segundo aniversário, desgraçado!
- O que tem o segundo aniversário?
- Nós fomos a Manaus com o Clécio e a Vilda em nosso segundo aniversário de casamento, seu beócio.
- Ah, foi!
- “Ah, foi!”, “ah!, foi”... Você não lembra, confessa.
- Não lembro mesmo.
- Como é que você não lembra coisas tão importantes que nos aconteceram, seu maldito?
- Porque eu penso nos muitos anos que ainda vamos viver felizes. Porque vejo nosso amor em perspectiva e não em retrospectiva.
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Como Era Bom

Como era bom o tempo em que tudo rescindia a jasmim, em que , para tudo, o amor bastava, que o leve toque das mãos afagava a alma e consolava o espírito.



Não havia problema que a troca de olhares cúmplices não resolvesse. Nós tínhamos um ao outro e planos para ambos, para os chicos que se chamariam Cleoneide e Cleovaldo, para nossa casinha na COHAB, para nosso casamento na Igreja Petangular do Saquinho de Trinta Moedas de Judas, para nossa lua-de-mel em Cabrobó... Tínhamos todos os sonhos passeando sobre nossas cabeças, sonhos tão fortes que eram quase palpáveis.



Como eram lindos aqueles tempos...



Você e eu passeando à tardinha na praça da matriz, mãos dadas, sorrisos abertos, causando inveja aos outros casais, tão felizes nós éramos. A gente acordando cedinho no sábado para encontrarmos as frutas e verduras fresquinhas na feira. O caldo de cana com pastel de queijo com gostinho de bom dia e, depois, o dia inteiro juntinhos, fazendo tudo a dois, sonhando e vivendo em comunhão.



Eu bem disse que essa coisa de micareta é coisa do Cramunhão, mas você insistiu em ir e eu cedi. Não deveria ter cedido. Deveríamos ter ido para o retiro da igreja, mas você teimou tanto e eu não conseguia não fazer seus gostos, era meu maior prazer.



No meio de tanta gente seus olhos tinham que encontrar os olhos verdes do Satanás daquela piranha da Doricélia, né, cachorro? Suas mãos descaradas tinham que roçar nas coxas da Doricélia, né, safado? A vagabunda da Doricélia tinha que ficar esfregando aquele bundão dela nas tuas coisas, né safado?



Pois você fique com a Doricélia, filho de uma vaca de três tetas! Amanhã mesmo vou procurar um advogado e vou te deixar sem nada! Ou você acha que eu vou sustentar os dois moleques sozinha? E nem adianta me pedir arrego que eu não dou. Vá para a feira agora com a biscate da Doricélia, se quiser, seu garanhão de brega.



E fique sempre muito mal!



Fartileide.

Rapel

Atanagildo havia aceitado o convite de Siderlene, sua musa das noites mal dormidas, para fazer rapel. Domingo, cedinho, a garota o pegou em casa e partiram para o campo. No carro de Siderlene iam mais duas amigas e todas aquelas tralhas de cordas e mosquetões.

Aos poucos, enquanto despertava de vez, Atanagildo começa a tomar consciência da besteira que fizera. Para impressionar a garota, amante da vida ao ar livre e de esportes radicais, e sob o efeito de duas doses de uísque aceitara o convite sem ter-se questionado se seria capaz de realizar tal tarefa. Estava percebendo sua acrofobia adormecida acordar.

Garoto do interior, onde os prédios mais altos não passavam de sobrados de dois andares, Atanagildo lembrava agora do dia em que fora visitar o primo, morador do décimo primeiro andar de um prédio na Barra, em Salvador. Impressionado com a vista que se tinha do mar, saiu para a varanda. Lembrava agora como se agora estivesse vivendo aquilo, do frio que sentiu percorrer o espinhaço, da vertigem, da sudorese quando olhou para baixo e viu a avenida com seus carrinhos de brinquedo, de como teve que segurar-se com força no parapeito da varanda para não desmaiar, de como gritava histérico e de como o primo teve que conduzi-lo de volta para dentro do apartamento.

De volta à realidade, perguntava-se por que fora tão covarde a ponto de não admitir seu medo de altura. Ela entenderia, saberia que não é uma coisa consciente, mas, não, o bobão tinha que topar o convite e se via dentro de um carro, com três lindas e aventureiras garotas, tendo a certeza que estaria sendo motivo de piedade e chacota dentro de uma hora.

Meia hora de subida por uma estrada de terra sinuosa, por entre árvores e pastos, chegaram ao platô onde já havia uma pequena multidão os esperando. Naquele ambiente em que se era possível sentir não só o cheiro, mas uma névoa de adrenalina, a adrenalina de Atanagildo empestava o ambiente e sua cueca.

Um bonitão com cara de super-herói de quadrinhos convocou os novatos para as instruções sobre o uso do equipamento e as medidas de segurança.

Atanagildo ficou um pouquinho aliviado ao perceber que, além dele, haviam mais doze novatos. Entre tantos poderia se esconder melhor e, talvez, passar desapercebido.

Tudo ia bem enquanto as instruções não passavam de nós, cordas, grampos, posição, como segurar a corda, o que evitar fazer e coisas tais. O instrutor instruía e Atanagildo fazia caras e bocas, demonstrando que entendia tudinho, que não teria dificuldade em praticar. Uma segurança de faz de conta.

Aos poucos começaram as descidas numa seqüência acordada entre os veteranos. Descia um antigo, depois um novato e assim se sucederiam. Um veterano, um novato, um veterano, um novato... Cavalheirescamente, Atanagildo ofereceu-se para ser o último. Para os outros foi uma atitude simpática, para ele foi um tempo a mais para pensar o que fazer para não descer. Chegar à beira do precipício estava totalmente fora de cogitação.

Siderlene foi a quarta veterana. Vendo-se sem os olhares de simpatia e admiração da amiga, sem ter pensado em nenhuma saída honrosa, Atanagildo embrenhou-se na mata e levou três dias de caminhada para cobrir os sessenta quilômetros, evitando estradas e humanos, até sua casa, de onde não sai há um mês.

Quase Pai

O bebê nasceria a qualquer momento. Adanálio alertou os colegas de trabalho e os chefes que, assim que a esposa telefonasse dando o alarme, deixaria tudo como estivesse e partiria correndo, não perderia por nada o parto de seu primeiro filho.

Precavido, durante toda a semana voltava para casa pelas ruas que denominava rota de fuga, ruas laterais onde o trânsito era bem menor que o das grandes vias. O trajeto ficava um pouco mais longo, mas poderia ser percorrido em vinte minutos, enquanto que pelas vias principais poderia levar quarenta minutos ou mais. Familiarizava-se com cada buraco, esquina, semáforo.

O expediente matutino estava no meio quando o celular tocou.

- Amor, vai ser agora.

A mensagem curta sequer foi ouvida até o final. Pulou da cadeira gritando "tá na hora!". Estabanado saiu correndo do escritório em direção aos elevadores antes dos colegas recuperarem-se do susto com o grito que quebrara a calma habitual.

- O elevador! Segura o elevador!, bradava durante a corrida. Para sua sorte a porta abria-se no justo momento. Entrou, a porta fechou-se. Estava subindo. Droga!

Apertou o botão 6 do andar imediatamente superior. A porta abriu-se mais lenta que sempre. Saltou. As escadas. Desceu como um atleta de cem metros rasos. Passou a toda pelo saguão, pela portaria, pela porta rumo ao estacionamento.

O carro na vaga 1. As chaves! Esquecera-as no bolso do paletó pendurado na cadeira. Cérebro rápido como um ladrão, pega o celular e liga para o escritório. Os dois toques antes do atendimento pareciam um ano.

- Sanderléia, rápido, esqueci a chave no bolso do paletó. Rápido! Joga pela janela.

Sanderléia prestativa, mas com um raciocínio lento, esbaforida abre a janela, vê Adanálio na calçada fazendo gestos como um operador de taxiagem, não entende o que sinalizava o quase pai, atira o paletó com a chave no bolso.

Aberta ao vento, a roupa faz acrobacias e cai sobre a marquise, lenta como um pára-quedas. Xingava enquanto corria para a portaria, "mulher burra!".

O porteiro não entendia nada pela segunda vez em poucos minutos ao vê-lo passar como um raio. Nada de elevadores. Escadas subidas de dois em dois degraus. Corredor. Abre a porta da sala de espera do escritório do advogado num supetão. A secretária solta um grito, atira os papéis que segurava para o alto, tropeça no bebedouro derrubando o garrafão quase cheio que se arrebenta no chão. Cachoeira mineral que alaga o carpete e os documentos.

Em sua carreira irrompe no escritório. O advogado, em choque, vê sua peruca voar enquanto despenca da cadeira aos gritinhos. A cliente idosa reage apenas com o esbugalhar dos olhos e a cara de pânico. A janela travada por causa do ar condicionado. Pega a cadeira vazia do advogado, agora encolhido no canto da sala em posição fetal, e a arremessa contra o vidro, lançando cacos em todas as direções e o barulho de um trovão seguido da sirene do alarme.

Salta para a marquise, pega o paletó. Tem vontade de se jogar dali direto para a rua, mas, sensato, percebe que altura não recomenda. Salta de volta para o escritório. Na porta já coalhavam curiosos. A secretária histérica grita "pega! Pega!". O contador tenta segurá-lo, a dentista, o office-boy, a pequena multidão. Com os braços agitados como um nadador frenético, tentava se desvencilhar enquanto berrava "sai! Meu filho vai nascer!". O cotovelo acertou um nariz, o dedo entrou num olho, a palma da mão acertou uma orelha, viu uma dentadura voando.

Sob impropérios e palavrões a escada que desceu voando. Portaria. Uma peitada no moto-boy jogando cada um para um lado aos tropeções, reequilibra-se como Pelé e vê um capacete no ar seguido por dois envelopes. Calçada. Estacionamento.

- Moto-boy filho de uma égua!

Xingava não pela trombada, mas pela moto estacionada fechando seu carro. Tentou arrastá-la. Não conseguiu, as rodas travadas. Atirou a moto no chão e, com uma força que não sabia ter, afastou-a para longe do caminho dos pneus. Abriu a porta, atirou o paletó no banco do carona e partiu a mil. Ainda pôde ver a turba saindo pela portaria à sua caça.

Viraria à direita no primeiro semáforo. Fechado! Um ano para abrir e os carros da frente impedindo que cometesse uma infração. Abriu. Vira. Acelera.

Como previra, o trânsito era tranqüilo naquelas ruas. Poderia aumentar a velocidade, na maioria vias preferenciais. E se houvessem crianças brincando na rua? Um cachorro? Um velhinho atravessando? Corria apertando a buzina com força desejando que fosse uma sirene.

Voava pelo asfalto liso. Ao passar por uma esquina, teve a impressão de ter visto um policial numa moto na transversal à direita. Estava certo, era um policial que se apresentava à sua retaguarda, sirene e luzes ligadas.

A cidade estava muito violenta, a polícia muito tensa. Melhor parar para não correr o risco de receber um tiro de um policial afoito que já se comunicava pelo rádio, provavelmente pedindo reforço, via pelo retrovisor. Seta para a direita, reduz a velocidade e encosta no meio-fio. O policial pára alguns metros atrás, saca a arma, agacha-se atrás da moto.

- Rápido, seu guarda, rápido. Multa logo e me libera, falava entre dentes.

- Abra a porta devagar e saia do carro, gritava o policial.

Pombas! Tem que ser devagar?. Obedeceu, mãos para o alto.

Ele não queria sair devagar, desejava apressar as coisas, mas não faria nada impensado que pudesse fazer seu filho nascer órfão de pai.

O policial com a pose de autoridade que é peculiar à função, talvez esperando uma oferta de propina que não viria jamais do correto Adanálio, ou apenas exercitando o poder, dava sermão e multa. Inquieto o quase novo pai ousou interromper e explicar que a esposa o aguardava para que a levasse à maternidade, daí tanta pressa.

- Por que o senhor não disse antes? A minha também está grávida e eu imagino seu desespero. Não se desespere, cidadão! Siga-me que lhe farei a escolta, falava de peito inchado o policial do alto do seu coturno e importância.

Agora eram dois sem freio pelas ruas do bairro: o policial, sua moto e sua sirene, e Adanálio com seu desespero e a camisa empapada de suor.

Oitenta, cem quilômetros por hora pelas ruas estreitas. Os poucos carros que vinham à frente encostavam ao som e luzes da polícia. Agora as coisas estavam quase perfeitas.

Malditos vândalos! Roubaram a tampa do bueiro!

O policial viu a tempo de reduzir a velocidade, mas não de evitar a queda. Saiu catando cavaco pelo asfalto, moto estraçalhada quicando sem rumo, a freada brusca de Adanálio que mal espera o carro parar e já salta correndo em direção ao policial deitado que mantinha a pose de herói:

- Vá, cidadão, sua esposa precisa mais do senhor do que eu nesse momento.

Com o celular na mão e ligando para o serviço de ambulância, Adanálio sabia que não poderia abandonar o soldado sozinho sobre o asfalto fervente e sob o sol escaldante.

Já juntava gente. Turba, burburinho, os moleques depenando a moto, as velhas e seus "coitadinho", os inventores de histórias e suas várias versões, o calor infernal e nada de ambulância.Juntos chegam o socorro e a rádio patrulha. Pressa no socorro, vagar nas explicações. O próprio guarda ferido fala a um colega o ocorrido, ajudando a liberar Adanálio.

Dificuldade em se livrar da multidão. Atenção no caminho, velocidade controlada e nervos quase. Nada mais poderia dar errado. E não deu. Caminho livre e sereno até o edifício onde morava no oitavo andar.

"Olá" para o porteiro, corrida até o elevador, aperta o botão e a luz não acende.

- Tá sem energia, doutor, faltou agorinha.

Escada. Por sorte não parara com o futebol domingueiro, o preparo físico seria essencial. Subida, dois em dois degraus, oito andares. Rezava enquanto subia.

Na porta do apartamento o bilhete curto e duro: "Fui de táxi, seu irresponsável!".

Exausto, sentou-se no chão, recostou-se na porta, respirou fundo e tomou uma decisão definitiva e irrevogável:

- Vasectomia.

Aleivosia

Era aleivosia mesmo, Teófes, tô te dizeno! Como eu num havéra de sabê a deferença entre aleivosia e gente de carne e osso? Lósco que era coisa do ôtro mundo, tô te falano.

Purque eu sei, ora. Óia, falá cumigo inté que ela falô, mai eu num posso dizê o que foi, tu num ia gostá de sabê.

Num inséste, Teófes, num posso falá, não. Dosulivre!

Que ôme teimoso! Se eu tô falano que era aleivosia, é purque era, disgrama.

E como que tu sabe que num inzéste?

Ah, o pade disse... Logo o pade. Num é esse pade que fala que é pecado, vai prosinferno quem deseja a muié dos ôtro? E apois. É o mesmo pade que reza a missa todin-a oiando pus juêio de dona Zândi de Urbino da farmaça. Num é ele que diz que é pecado negoçá fora do casamento? Pois num é ele mesmo que coiseia com umas trêis carola lá na sacristia e todo mundo sabe? Pur que eu havéra de querditar nele quando diz que num inzéste visage? Apois eu lhe afirmo que inzéste e eu vi com esses zói que hai de vê Jesus Cristin-o no dia do juízo. Tu vai crê ni mim ô num pade mintiroso?

Oxe! Quando que eu mintí pa tu?

Ah, mai num tem valença. Nóis tava interessado na mesma muié e dizem que no amô e na guerra vale tudo, num dizem? E apois? Mai tu tomém mentia pa eu, ô tua acha que eu num sei que quem mandava aquelas frô pa ela era tu? O peó é que ela num ficô nem cum eu nem cum tu. Terminô fugino com o engomadin-o lá das Grota Grande. A gente perdemo junto.

Como? Só vai crê n’eu se eu dissé o que ela falô? Posso não, Teófes, num vai sê bom pa tu sabê.

Tá, foi ansim. Eu tava lá nos fundo do cercado. Era meia noite quando iscuitei os porco fazeno algazarra. Peguei a socadêra e fui lá pensano que pudia sê cobra, cachorro do mato, filiça ô outro bicho.

Rodei o terrêro todo, cavuca de cá, cavuca de lá e nada. E os porco grunindo. A lua tava cheiona, amarela, alumiano tudo, facim de vê tudo derredó. Mai eu num via nada.

Cansado de percurá, sentei na cerca, iscorei a ispingarda no morão, peguei uma paia e fiquei ali pitano, isperano aparecê o bicho que causava o rebuliço. Aos pôco a porcada foi carmano, carmano e vortô o silênço. Só os grilo, os sapo, os vaga-lume e os bacurau imbaxo do lua, e eu pitando aquela gostozura que Deus deu.

Cabei o cigarro, vi que tava tudo na paiz do Sinhô e arresorvi vortá pra rede. Quando dici da cerca e me virei pa pegá a socadêra, ela tava impé do lado. Muito alta, branca mais branca que a luz da lua, cum vistido branco inté os pé que num tocava o chão, os zói azuzim, azuzim, oiando pa eu.

Subiu um gelo pelo ispin-aço, sinti os cabelo ripiá, minhas perna bambeô, a boca secô. Num cunsiguia mais me mexê. Ela oiava pa eu com os zoião azul. Daí ela me preguntô um-a coisa que eu, gaguim que nem o Zelotéro, quaix sem voz, respundi. Daí ela falô ôtra coisa e sumiu no ar.

Posso dizê não, Teófes, num inséste.

Que caba mais teimoso!

Ah, é? Só querdita se eu dissé? Intonce vô dizê.

Ela priguntô se eu era o Teófes Figueira dos Anjo. Eu dixe que num era. Aí ela dixe que eu adiscurpasse ela, que ela que ela quiria falar era cum o Teófes. Pronto, tu priguntô, eu falei.

Péra, Teófes! Vorta aqui! Num dianta se iscondê, não, Teófes, uma noite ela te acha! Vorta, Teófes!

Num te falei, Raonílio, que esse tar de Teófes é um cagão? Ganhei a aposta? Intonce paga a pinga.

Ari Burro

Aristodemo não teve o amor de mãe, morta no parto. “E daí?”, respondia para fazer pouco caso de sua perda, “se mãe fosse bom Jesus não tinha deixado a dele”. Em troca recebeu a vingança do pai, Deleutério, que o culpou por toda a vida por sua viuvez. Nem de longe isso afetou o garoto ingênuo que via em tudo ensinamentos e fortaleza. Sequer percebia o ódio mal contido do pai.

Não fosse a Dozinha, sua tia mais nova, para dar-lhe leite, trocar-lhe os cueiros e todos os cuidados mínimos, porém capengas, já que Dozinha tinha pouco mais de dez anos de idade e cuidava do bebê como se de uma boneca, Aristodemo teria morrido à mingua ou sufocado em suas próprias sujeiras.

Cresceu descalço e nu até que uma alma caridosa da vizinhança lhe presenteava com um calção velho que já não servia mais para os próprios filhos.

Quando não estava carregando água para a limpeza da casa, para o banho de Deleutério, indo e voltando da venda de onde trazia alguma farinha, rapadura e cachaça, varrendo o terreiro, alimentando os porcos e galinhas, que por sorte andavam livres pelo quintal, diminuindo suas tarefas, o moleque pé-de-vento estava correndo de um lado para os outro pelas ruas do lugarejo. Metia-se nas conversas, hora enxotado, hora afagado, carregava sacolas na feira, sentava na calçada para ouvir o velho cego que tocava pífano na porta da igreja em troca de alguma moeda. Ajudava as lavadeiras com suas trouxas rumo ao rio, pegava na vassoura junto com o coroinha depois da missa para deixar o adro da matriz sem pó, ajudava as velhinhas a atravessarem as ruas evitando as bicicletas e carroças. Não parava.

Um dia perguntou ao pai por que recebera tal nome, ao que, sem medir sua maldade, Deleutério dissera que era o nome do burro que ganhara do avô. Sem entender a ofensa, deixou de lado até que o Calafeu, filho do dono da venda, perguntou-lhe a mesma coisa. Inocentemente contou a origem do seu batismo – batismo por assim dizer, nunca fora batizado. Virou motivo de gozação da molecada, sem dar-se conta da crueldade por trás.

Dona Dorazilda, a professora, penalizada, tentou consolá-lo, mesmo ele nunca ter-se sentido ofendido, explicando que o burro era um animal forte, trabalhador, o melhor amigo do sertanejo. O efeito foi o contrário do esperado pela velha. A partir de então o próprio Aristodemo se apresentava como o menino-burro, orgulhoso, era forte, trabalhador e o melhor amigo das pessoas do lugar. Virou o Ari Burro e a chacota perdeu a força, virou nome.

Ari Burro crescia com um sorriso nos lábios, pernas rápidas, raciocínio pronto e sabendo fazer de tudo.

Um dia chegaram as freiras. Montaram uma escola. Saíam pela periferia daquela periferia catando as crianças mais pobres e as levavam para o semi-internato. Em troca da disciplina rígida, dos ensinamentos puxados de álgebra e gramática, acrescentavam-se os religiosos, de arte, canto e a inseparável palmatória. Davam roupas limpas, cadernos, lápis e três refeições por dia. A última parte interessou a Ari Burro.

Se fosse necessário aprender a ler, a somar e estudar a Bíblia naquelas intermináveis horas em troca de uma comidinha quentinha e feita por mulheres tão limpinhas, estava disposto ao sacrifício.

Não foi fácil domar o xucro Aristodemo. Foram palmatórias e mais palmatórias, vara de marmelo na bunda, puxões de orelha, ficar em pé por duas horas, imóvel, sob o sol quente, castigo de joelho no milho, mas aos poucos as irmãs o moldavam. Ele agüentava pela sopa, o pão, o café com leite, o arroz com galinha à cabidela nos dias festivos e os doces de batata que, volta e meia, aparecia em suas mesas.

Já não se via mais Ari Burro correndo pelas ruas, ajudando a quem precisasse, carregando embrulhos ou trouxas de roupas. As beatas varriam o terreiro da igreja, as velhinhas atravessavam as ruas sozinhas. Nem Deleutério tinha mais chance de espinafrar o filho que, quando em casa, se refugiava no fundo do quintal sob a jaqueira com seus livros e cadernos.

Em sua primeira semana no colégio das freiras, lhe perguntaram o que gostaria de ser quando crescesse.

- Deus.
- Ninguém pode ser Deus, Ele é Único!, assustou-se irmã Anunciata.
- Mas eu quero ser Deus.
- Não blasfeme, garoto, ou vai para o castigo.
- Irmã, a senhora não perguntou o que eu queria ser? Eu quero ser Deus.
- Você não quer ser padre?
- Eu até queria, mas agora eu quero ser Deus.
- E posso saber por que o senhor quer ser Deus?
- Porque ele é rico.
- Quem disse que Deus é rico?
- Eu sei.
- E como o senhor sabe?
- Todo dia o padre não passa um saquinho na missa recolhendo dinheiro do povo e diz que é pra Deus? Se fosse pro padre eu queria ser padre, mas já que é pra Deus, eu quero ser Deus.

Surra de vara de marmelo! Castigo! Um dia sem comer.

Desistiu de ser Deus. Padre já estava bom.

Já no seminário, um dia recostou-se na janela observando a vida na cidadezinha e viu um garotinho pretinho como ele, descalço, vestindo um calçãozinho rasgado e sujo, atravessando a praça correndo em direção à venda do seu Sodó. Pouco depois o garoto saía correndo de novo com um pacote de velas na mão, um sorriso na cara e a velocidade de um alazão.

Algo despertou em Aristodemo. Empertigou-se, clareou o cenho antes carregado, como se iluminado por divina luz. O que estava fazendo consigo?

- Ora, ora, ora. Não é que estou me tornando um burro mesmo? Eu não era Ari Burro à toa...

Arrancou a batina, saiu do prédio e voltou à sua vida livre de antes com seu pífano, sua sandália, a pouca roupa e ajudando de verdade as pessoas a quem sempre teve tanto bem e não percebia.

Insônia e Vigília

Tornou-se um par ímpar, diferente em quase tudo. Suas vidas intercederam-se quando, num desses encontros inexplicáveis da vida, se bateram em frente a uma estante de poesias na livraria do bairro.

Ele procurava Vinícius por paixão pela poesia do Poetinha, ela procurava em Vinícius uma companhia para as madrugadas insones.

Bearrice não dormia havia anos. Não era uma doença, somente uma companheira constante. Simplesmente não dormia. Gastava as horas lendo ou escrevendo. Não sentia cansaço, fadiga e nem mau humor. Apenas não dormia.

Lembrava que seu último sono longo fora há dois anos quando abrasava uma paixão feliz e incontrolável por Zenildo. Foi um amor de meses que se acabou com a transferência do rapaz para Santarém. Com seu próprio negócio e uma vida cheia de compromissos, ela não pôde acompanhá-lo e as noites acordadas voltaram.

Foi aí que percebeu que por toda a vida só dormira bem quando estava feliz.

Com Mateneu ocorria o oposto, dormia quando bem queria. Com vida solitária, sem amante ou grandes paixões, dormia para livrar-se dos dias vazios. Na leitura e nos sonhos vivia aventuras, romances correspondidos e completos. Seu dia se resumia às oito horas de trabalho e às obrigações chatas da vida de adulto. Cumpridos os compromissos, se atirava na cama com um livro e lia até o sono chegar. E sonhava com o que lera. Já fora D’Artagnan, Quixote, Eduardo Marciano, Macunaíma, Vadinho... Acordado era apenas mais um bedel da prefeitura. Os sonhos eram mais divertidos.

Aquele último Vinícius na prateleira encarregou-se de provocar o encontro com que ambos fantasiavam encontrar.

Cavalheirescamente, ele ofereceu à loira Bearrice a prioridade da compra. Ela, já com todos os demais livros do velho Vina na prateleira, insistiu para que ele levasse aquele. Enquanto discutiam quem ficaria com o livro, sentaram-se para um cafezinho, ali mesmo, na livraria. Aos poucos a conversa foi tomando outros rumos, suas próprias vidas, nomes, afazeres... Essas conversas próprias de quem acaba de se conhecer e que não deseja a separação breve.

Quando receberam o aviso do funcionário que a livraria estava fechando, perceberam o quanto conversaram. Era hora da decisão. Ele ganhou. Bearrice ficaria com o livro e, depois de lê-lo, o emprestaria a Mateneu. Trocaram os números de telefones com o compromisso de um novo cafezinho logo, logo.

Cada um para seu lado e um gostinho bom durante a insônia dela e as viagens noturnas dele.

Aquela madrugada ela atravessou folheando a lista telefônica, número por número, em busca do endereço do rapaz. Ele dormia com ela entre nuvens.

Nas primeiras horas da manhã ele recebeu das mãos de um estafeta o livro em embrulho colorido e dedicatória singela. Para retribuir o carinho e o presente, sem saber qual dos dois fora mais tocante, retirou do bolso o papelzinho em que anotara o nome da loura e a convidou para um jantar.

Mais uma despedida difícil à noite. A comida foi detalhe que degustaram aos pouquinhos para que não houvesse fim, não o jantar, mas a companhia. Falaram de suas vidas sem omitir detalhes, um queria que o outro soubesse tudo a seu respeito e queria saber tudo do outro. Muito foi dito, tudo foi ouvido e as horas passavam.

Alta madrugada foram novamente enxotados pelo último funcionário.

A vontade de não se separarem foi maior que a timidez e a pudicícia. Ela tomou a iniciativa e o convidou para irem à sua casa. Não houve titubeação, a resposta veio rápida.

Desde aquela noite, na mesma cama, ela dorme como uma criança, sorriso nos lábios e ele atravessa as noites velando para que a felicidade não acabe.

Bozó

Cinco filhos e uma mulher, um barraco precisando de reformas antes que caíssem os caibros nas cabeças da família, Jairino se virava para colocar pão na mesa e os apetrechos da escola da meninada, duas coisas para as quais não relaxava.

Fez da sala de estar um botequinho onde só cabia o balcão entre ele as prateleiras lotadas de garrafas de cachaça, umas puras, outras temperadas, e os clientes que se aboletavam nos quatro bancos de pernas altas.

Num bairro pobre de uma cidade pobre, o boteco é o parque de diversão dos adultos, barato e de onde todos saem com a sensação de que não existem problemas, rindo ou chorando à toa, amando ou odiando mais suas mulheres conformadas.

A féria era dividida em três partes. Uma para a alimentação, outra para as demais necessidades da molecada e a terceira, o capital de giro que aplicava aos pouquinhos na birosca.

Já conseguira comprar duas mesas que se espalhavam com banquinhos na calçada, por falta de espaço dentro, e já ensaiava a compra de uma geladeira. Se a cachaça dava um lucro considerável, a cerveja incrementaria os negócios. Abrira uma porta nos fundos que dava direto na cozinha e de onde vinha um tira-gosto de carne assada aumentada com muita farinha. Fazia volume e economizava dinheiro na enganação.

Volta e meia aparecia um espertinho com um baralho e montava-se um jogo para tirar os níqueis dos incautos bêbados ansiosos por um dinheirinho extra. Jairino observava as táticas e técnicas do espertalhão, como ele fazia para viciar o carteado, como alguns vinham com um parceiro que fingia ser desconhecido; não deixava de notar um “peru”, como chamavam os assistentes que davam pitaco no jogo de fora da mesa e o que menos falava usava óculos de lentes espelhadas e se punha atrás do adversário do dono do baralho.

Normalmente esses jogos terminavam em bate boca e confusão, hora em que Jairino desmanchava a mesa e fechava o bar antes que uma peixeira saísse da cintura de um mais afoito. O dono do baralho, sempre saía com a algibeira cheia e sorriso na cara.

Em outras oportunidades, surgia um dominó nas mãos de dois amigos que jogavam sozinhos e se divertiam, atraindo aos poucos a curiosidade dos demais. Não demorava, havia fila para jogar. Invariavelmente os dois primeiros jamais eram derrotados, causando inveja e desconfiança dos demais que montavam suas duplas, discutiam estratégias e, mesmo assim, perdiam seus trocados nas apostas.

Para não chamar atenção demasiada, os embusteiros se deixavam derrotar de vez em quando, tomavam um refresco e esperavam a oportunidade de voltarem à mesa para continuar a exploração dos adversários embriagados.

Jairino percebia os sinais, como sutis coçadas de nariz, pigarros, ajeitadas diferentes na aba do chapéu. Mas, como os barbeiros e médicos, guardava segredo, quem quisesse se deixar enganar, que arcasse com os prejuízos, a ele só cabia o lucro da venda das bebidas e tira-gostos de mais farinha e pouca carne.

Pela satisfação dos desonestos, o botequeiro passou a imaginar uma maneira de, ele também, se dar bem com tramóias inocentes. Ninguém chamava ninguém para jogar, a usura e a necessidade de dinheiro se encarregavam de levar os abestalhados a se arriscarem num jogo que não dominavam. Jairino passava horas por dia matutando o que poderia fazer de diferente para também montar sua banca de jogos. Nada de baralho, teria que contar com um cúmplice, ou dominó.

Na feira, onde ia aos sábados de manhã comprar carne barata e cachaça baldeada, viu um grupo de estivadores numa rodinha, gritando, sorrindo e apostando. Aproximou-se, curioso, sabendo, por instinto, que ali havia uma jogatina. Jogavam dados. Dados comuns, cada um apostando em um número. Ganhava toda a bolada quem acertava. Era um jogo rápido, portanto as apostas eram pequenas, coisas de centavos. Essa alta rotatividade lhe interessava. Talvez fosse o jogo que procurava. Não foi difícil encontrar uma biboca onde se vendessem dados e o bozó. Só faltava uma estratégia para nunca perder.

Naquela tarde o boteco lotou. Faltou mesa e alguém providenciou caixotes de madeira que foram usados como mesas e tamboretes. No meio de alguma discussão sobre mulher, futebol ou política, alguém mais nervozinho dava um tapa na madeira, esquecendo-se que não era uma mesa das mais sólidas e os copos de cana se espalhavam. Estava ali o que Jairino procurava!

No dia seguinte, sozinho, no meio da tarde, poucos clientes no bar, como quem não quer nada Jairino pegou os caixotes, montou sua banca e passou a jogar os dados. Com carvão desenhou doze quadrados e enumerou cada um, em ordem crescente, a partir do número 1. Punha uma pedrinha em determinado número, aleatoriamente, e despejava o bozó. Conferia os números sorteados com sua aposta, quase sempre errando. O filho, vendo aquilo, confirmou que o pai tinha apenas uma possibilidade, em doze, de acertar, menos de dez por cento. O que significava boa margem de lucro, se doze apostadores de espalhassem nas apostas.

Não demorou a se aproximar o primeiro curioso. Jairino explicou que estava se divertindo sozinho, por falta de companheiro para jogar. Que não fosse por isso, os clientes apostariam. Levava a bolada quem acertasse o número.

- Peraí! Assim, não! – Jairino ditou as regras – Se ninguém acertar, eu fico com tudo. Quem acertar leva o dobro do que apostou. Se ninguém acertar, eu fico com tudo!

Os outros fizeram as contas. Só valeria a pena se todos os quadradinhos estivessem cobertos por apostas. Juntaram-se doze homens rapidinho em volta dos caixotes. Todos fazendo suas apostas.

Sempre alguém ganhava e Jairino apenas jogava os dados, nenhum lucro. A turma bebia, ganhava e perdia, os vencedores gozando dos outros, os perdedores aguardando sua sorte. Jairino apenas jogava os dados.

A assistência já bêbada, o botequeiro balança o copinho de couro, chama pelas apostas, e coloca o bozó sobre o caixote.

- Casem o dinheiro! Casem o dinheiro!

Todos colocaram suas moedas nos devidos quadradinhos.

- Tá casado?

E o “sim” coletivo.

- Ninguém mexe nos dados. Vou mijar e já volto. Ainda tá em tempo de mudar, quem quiser.

Dito isso, saiu pelas portas dos fundos e ficou espiando pela fresta das madeiras da parede.

Urozimbo, não se contendo, levantou o bozó e olhou os dados: 8. Com o dedo indicador em riste diante dos lábios, pedia silêncio aos comparsas. Retirou a moeda que havia depositado no 10, juntou mais algumas a ela e colocou todas no quadradinho do 8. Os demais, para não saírem perdendo num jogo que já sabiam perdido, fizeram o mesmo. Todas as moedas e as primeiras cédulas, todas sobre o número 8. Gente que nem estava apostando se juntou ao grupo. Mais e mais dinheiro, uma pilha considerável. Só se preocupavam com uma coisa: Onde Jairino iria arrumar dinheiro para pagar o dobro de todas aquelas apostas.

Dinheiro casado, silêncio de sociedade entre os parceiros, aguardaram ansiosos a volta de Jairino. Este entra fechando o zíper da calça como se tivesse acabado de sair do banheiro.

- Tá casado?

O “sim” coletivo veio mais alto e mais animado.

- Ninguém quer mudar?

- Não!

Com um tapa no caixote, que fez os dados se revirarem sob o copo, Jairino gritou enquanto agia:

- Vou abrir!

Deu 3.

Frizo

Como só quem tem anjo-da-guarda garantido são as crianças, os velhos e os bêbados, foi dado a Frizo um daqueles parrudos, pau pra toda obra. A cada dia o tal anjo tinha que fazer trabalho dobrado para salvar a pele do seu protegido.

Frizo – na verdade, Etelvino, no batismo – se metia em qualquer enrascada que por ventura aparecesse pela frente. Dizia que ele não as provocava, elas que o chamavam. Já passou a mão em mulher de samango, já parou touro bravo na mão depois de tomar uma garrafa de jurema, já espalhou pela cidade que o promotor tirara a mulher com quem se casara do brega São João do Sabugi, já passou cinco minutos embaixo d’água para ganhar a aposta de uma garrafa de pinga... De todas as suas aprontações se salvou sem arranhão ou olho roxo. Não dava folga para o pobre anjo.

O apelido ganhara do dono da bodega, o Herbínio. O merceeiro, dono do primeiro freezer de Ipueiras, dizia que o amigo tinha a cabeça fria como um “frizo”, suficiente para o codinome se espalhar.

Como todo peso da vida tem seu contra-peso, Frizo tinha sua Geriana. Mulher de uma delicadeza e elegância únicas naquela caatinga. De manhã lavava roupas das famílias de mais posse, à tarde passava e entregava, à noite se encarregava das costuras. Não encontrava mais lugar na casa para esconder a féria de tanta labuta. Fosse onde fosse, o marido sempre encontrava e dava um desfalque para as farras. Diziam as boas e más línguas que Geriana tinha lugar garantido no céu por suportar homem tão folgado. O cabra sumia por dias, chegava bêbado, maltrapilho e cheirando a alfazema das quengas. Ela, nem um pio. Preparava o banho, dava de comer, arrumava a cama e exigia silêncio dos cinco filhos para que não perturbassem o sono de Frizo. Ele, um folgazão; ela, uma conformada.

Nosso personagem, porém, não era um mau sujeito. Fazia camaradagem fácil e terminava amigo dos desafetos, bastava uma dose de uca. Ajudava os vendilhões a arrumarem suas mercadorias, fazia frete nas costas por um níquel ou uma cachacinha ou um pedaço de jabá. Animava o ambiente em que se encontrava. Veio ao mundo para se divertir e divertir quem o cercasse. Era apenas um folgazão boa praça.

Naquele inverno choveu de matar lambari afogado. A cidade festejava a bonança que as águas de São José prometiam. Nunca se vendeu tanta aguardente, ao pé do alambique Frizo fazia ponto para ganhar suas doses por conta da comemoração.

Ficou bêbado como há muito não ficava. A festança acabou, os demais ébrios iam para suas casas ou para o bordel amparados por suas mulheres fixas ou ocasionais. Frizo ficou sozinho com o último garrafão e se aboletou no banco do coreto da pracinha.

Foi tanta água que o riacho seco virou rio, o açude chorou, casas de barro batido viraram lama. A festa acabou em choradeira. Nem a torre da igreja resistiu à enchente e veio a baixo. Criações sumiram, móveis desciam o boqueirão junto com porcos e bodes. Já se preparava uma novena pedindo arrego ao santo durante a madrugada.

A mães punham os filhos sob os braços, como galinhas chocas, enquanto rezavam em voz tão alta que uma vizinha fazia coro a outra sem saírem de suas casas. As ladainhas se confundiam com o chuá das duas corredeiras, a que caía do céu e a que rolava pelas ruas.

O coreto onde Frizo roncava teve suas pernas arrastadas e o tablado de madeira virou jangada com sua cobertura milagrosamente intacta. No seu sono, Frizo sonhava que atravessava o Atlântico comandando um navio que ia para a Arábia. Sonho gostoso, daqueles que fazem a gente sentir a sensação das ondas. A chuva caía, a correnteza das ruas virava rio e seguiam o rumo natural dos rios, o mar. Navegando em seu sono e no quiosque-jangada, ainda abraçado ao garrafão, Frizo navegava para as Arábias.

Acordou importunado pelo sol ardendo a cara. Sentou no banco esfregando os olhos. Ao abri-los deu de cara com uma multidão que o cercava. Gente de toda espécie, velhos desdentados, velhas beatas e fuxiqueiras, crianças espantadas com o espanto dos velhos, a polícia... Oxe! A polícia? O que aprontara dessa vez?

- Eta, jurema braba!

Olhando aquele amontoados de caras desconhecidas, quebrou o burburinho com a voz ainda bêbada e um bafo de desmaiar onça:

- De onde veio esse povo todo? Vai ter festa em Ipueiras?

O samango:

- Ipueiras? Tu tá em Acaraú, cabra! E o seu Cadorges do hotel tá querendo comprar sua jangada de cobertura.

- Ave Maria!, Frizo se espantava olhando o garrafão pela metade. Acho que vou tomar o resto pra ver se chego nas Arábia.

A Morte da Morte

Voltando pra casa, tranqüilinho, com seu livro de passar o tempo no colo, Ceraldo lia no banco do ônibus, hora e meia até chegar em casa. O gordo ao lado, fedendo a suor e cebola, o imprensava contra a janela. Só mesmo uma boa leitura para abstrair-se daquele ambiente lotado, calorento e inquieto.

Sua absorção na leitura foi quebrada por um perfume adocicado, suave, coisa feminina. Virou a cabeça esperando dar de cara com o gordo de barba grossa e perfume e deu-se olhos nos olhos com uma morena daquelas de se fazer ceder o lugar. Desnecessário, ela já estava no lugar do gordo e o olhava com um sorriso nos olhos e lábios serenos.

- Importa-se?

- O quê? An?

- Importa-se que eu sente aqui?

- Ah! Não, claro que não. Se a visse em pé, cederia meu lugar. Uma mulher como você deve sofrer num ônibus lotado de malandros.

- Uma mulher como eu? Como, como eu?

Era a chance. O livro estaria aqui amanhã, essa oportunidade poderia se única.

- Bonita, cheirosa... Deliciosa, sem ofensa.

- Já pensou que essa casca é apenas uma fantasia para atrair homens como você?

- Homens como eu? E como eu sou?

- Inteligente, bonito, viril e heterossexual. Difícil encontrar tudo isso numa mesma pessoa.

Dali por diante a conversa foi ficando mais íntima, mais amigável. Ela não respondia nada diretamente, apenas o nome, Teresa, que coincidia com o que ele lia momentos antes: Teresa, a Filósofa, de Fernando Savater. Era o mote para a conversa se aprofundar, assim como o interesse de Ceraldo.

- O que você acha da gente descer no próximo ponto e tomar alguma coisa para nos conhecermos melhor?

- Estava torcendo que fizesse o convite.

Dali para um barzinho simpático que já começava a acender as luzes para a noite que se anunciava, não custou nada. Ele pediu um chope, ela um suco de limão, sem açúcar ou gelo. Ele pediu iscas de camarão, ela filé mal passado, sangrando ainda. Ele queria saber dela, ela parecia já saber tudo dele. A conversa fluía fácil. Ele era solteiro e morava só, ela não falava de seu passado. Ele gostava de esportes, futebol no sábado à tarde, ela caminhava muito, daqui para ali, de lá para acolá. Ele trabalhava num banco, ela tinha negócio próprio.

Passavam-se os chopes e os petiscos, ela não demonstrava interesse maior do que na conversa e o animava a beber. Até a terceira tulipa ele estranhou, depois desta, se entregou. Deixa o barco correr.

Chegou a um ponto em que já enrolava a língua, as palavras mais difíceis tropeçavam nos dentes antes de sair. Melhor marcar outro encontro, se a convencesse a uma noitada mais quente, passaria vergonha. Antes de pegar seu telefone, endereço ou apenas sugerir um cinema amanhã, Teresa pôs as mãos em seus ombros, fixou seus olhos nos seus, de modo que ele não pudesse desviar o olhar e a atenção. Não sorria, olhar sério, voz mais grave e baixa, mas de uma firmeza que aprisionava Ceraldo por inteiro:

- Preste atenção que só vou falar uma vez.

O rapaz retesou-se entre as mãos firmes de Teresa e da sisudez do timbre.

- Eu sou A Morte e vim te buscar. Amanhã você não verá a luz do dia.

Estaria suficientemente bêbado para virar motivo de chacota? Que brincadeira de mau gosto ela estava propondo? Não conseguiu protestar. Antes que a voz trôpega se fizesse, ela continuou:

- Na verdade, sou apenas uma assistente, você é minha primeira encomenda, desculpe o mau jeito. Eu deveria ter virado aquele ônibus e imprensar sua cabeça entre dois bancos, mas fiquei com pena de machucar aquela senhora com as duas crianças que estavam lá no fundo.

Falando para si mesma, um momentinho de devaneio:

- Acho que vou levar um esporro da chefa, hoje...

Ceraldo ensaiou um protesto, trazendo A Morte de volta ao assunto que a trouxe ali:

- Bom, já que vou ficar de castigo mesmo e ainda não me habituei a essa função de ceifadora, vou lhe dar a chance de um último pedido, assim, que nem nos filmes de bang-bang de antigamente.

As mãos dela já não eram gadanhos, mas mãos femininas em carinho. Já não lhe apertavam os ombros, afagavam as faces como a uma criança chorosa.

- Vamos lá pra casa?

Era efeito da bebida, a irresponsabilidade do porre, o temor da morte, a incompreensão do que se passava? Pouco importava. Estava com um tesão incontido por aquela morena de olhos rasgados e tez de índia. Queria aqueles cabelos curtos emaranhados em seus dedos enquanto se esforçasse para não falhar entre suas pernas.

- É esse seu último desejo? Quer morrer em casa?

- Apenas a primeira parte dele, o resto te conto na minha cama.

A Morte não é má nem boa, apenas necessária, lição que Teresa aprendera nas instruções antes dessa missão. Já que dera ao condenado o último pedido, que cumprisse sua palavra.

Ceraldo abriu os olhos pesados do álcool da noite passada, via a luz entrar pela fresta da cortina. Era a luz do sol! Teresa devia ser uma louca ou drogada com aquele papo de último desejo, uma fantasia sexual que funcionara, como funcionara. Que noite ela havia lhe dado!

Olhou a moça desnuda sob a coberta abrir os olhos devagarzinho, um sorriso tatuado nos lábios bem desenhados e o “bom dia” preguiçoso açodando seus sentidos.

- Então, não vai mais me matar?, não conteve o tom de ironia.

- Não, acho que vou pedir à chefa pra me mandar de volta à vida. Não havia conhecido esse lado bom da última vez que passei por aqui.

Teresa levantou-se num pulo, correu para o banheiro enquanto gritava:

- Vou falar com a chefa e volto à noite para morrermos juntos mais uma vez.

Encontro Estranho

Passava pouco das duas da madrugada quando Ambrósio estacionou o carro em frente à casa de Veraneide. Vinham de uma noitada com amigos comuns, onde se conheceram. De cara o rapaz se interessara pela beleza e espontaneidade de Veraneide, de quem não desgrudara por toda a noite.

Ela não cedeu aos seus encantos e insistência, mas permitiu que a levasse para casa, uma bela casa em estilo colonial num condomínio fechado, com jardins amplos e bem cuidados, segurança permanente e armada. Naquele sossego, Ambrósio viu a oportunidade ideal e final de fazer suas investidas. Desligou o motor, já virando-se para o lado a fim de olhá-la nos olhos, seguro que a um olhar profundo e meloso, daqueles que refletem franqueza e paixão, dificilmente as meninas resistiam. Encontrou, porém, não um olhar romântico e interessado, mas cenhos franzidos virados para o enorme canteiro que separava as duas pistas.

- Que foi? Que houve?

Ao mesmo tempo em que perguntava, virava a cabeça na direção do olhar da acompanhante. Em pé, de costas para eles, uns cinqüenta metros distante, um rapaz alto, vestindo uma bermuda azul e camiseta branca, andava de um lado para o outro sem desviar a vista da casa de dois andares e luzes apagadas.

- Quem é o cara?

- Não sei, mas me lembra o Angelim.

- Quem é Angelim?

- O ex-namorado da menina que morava ali.

- Ih! Já vi esse filme. O corninho tá achando que vai reconquistar a ex no meio da madrugada. Esses manés bebem umas e ficam românticos. – Sem perder a oportunidade, emenda – Têm que aprender a ser romântico o tempo todo, assim como eu.

- Ele sabe que não vai...

- Ele quem? Sabe que não vai o quê?

- O Angelim sabe que não vai reconquistar a Belza.

- Como é que cê sabe? Ela te falou?

- Ela não mora mais ali. Não mora mais em lugar nenhum.

- Comequié? Papo estranho...

- Ela morreu.

- Vixe! Se ela morreu, o que ele tá fazendo ali? Matando a saudade?

- Isso é que é estranho. Ela se matou porque não queria casar. As famílias insistiam, o Angelim não largava do pé dela. A única saída que arrumou para fugir da pressão, foi cortar os pulsos.

De repente Ambrósio sentiu que a noite cálida e estrelada tornara-se gélida, ou talvez fosse apenas o arrepio subindo pelo espinhaço até arrepiar a nuca.

- Cruz, credo! Quem se mata vai pro Inferno. – Se benzia enquanto falava.

A noite até podia não ter esfriado, mas o fogo em sua virilha sumira. Já virava-se para se despedir e marcar alguma coisa para amanhã, quando deu-se por Veraneide abrindo a porta.

- Peraí, não vai nem dizer tchau?

- Vou lá falar com ele.

- Peraí, peraí. E se ele estiver drogado? Se estiver armado a fim de fazer uma loucura ele também? Vai, não. Fica aqui.

Ela não lhe dava ouvidos, já estava do lado de fora e batendo a porta.

Droga! O que a gente não faz por uma mulher bonita? Se fosse embora agora, perderia qualquer chance de um encontro futuro. Desceu do carro, contornou-o rapidamente impedindo o caminho da garota.

- Tá legal, eu vou lá e digo a ele que você quer conversar. Assim eu protejo você caso ele tenha uma arma.

Garoto esperto. Fazia um favor e ainda vestia a armadura de cavaleiro protetor. Ponto para ele.

Sem responder com palavras, ela acenou positivamente com a cabeça.

Não podia dar pra trás. Sem muita firmeza, virou-se em direção a Angelim, a adrenalina misturando-se no sangue, fazendo o chão ficar mais macio sob os pés que se moviam contra a vontade do cérebro, devagar, hesitante. Deu uma olhadinha para trás na esperança de ela o chamasse de volta, o que não aconteceu. Onde fora se meter?

A cada passo, mais fria a noite ficava. Já imaginava urinando nas calças, tanto era seu temor.

Deu uma paradinha, respirou fundo, encheu-se de coragem. Que porra poderia acontecer? O moleque era um palito e não um rato de academia como ele, não daria nem para o começo caso engrossasse. Era apenas um fracote chorando a morte da namorada. Otário! Com tanta mulher solta por aí...

Ouviu um rumor de pés às suas costas. Virou-se de um pulo, quase trombando com Veraneide. Irritado, quase sussurrando:

- Pô! Não disse para esperar lá? Fica aqui!

Ela ficou, mas não o olhava. Fixava a vista no rapazola que já não ia e vinha. Estava parado, de costas para eles apenas dez metros à frente, olhar grudado na janela apagada do primeiro andar.

Ambrósio voltou a andar, agora encorajado. A presença de Veraneide o ajudara a quebrar a tensão em que se encontrava. Parou a um passo de Angelim e o chamou, “ei”. Nem um músculo se mexeu como resposta. Insistiu, “ô! Cara!”. Nada. Esticou o braço, apelaria para o toque, impossível ser ignorado. Mas seu dedo não encontrou nada. Angelim sumiu como a imagem de um televisor quando falta energia. Puf!

Ambrósio não gritou, o grito saiu vivo, por vontade própria, apenas um “ah!”, curto, seco. A mão recuou como se tivesse sofrido um choque elétrico. A cor de suas faces sumiu quase tão rápido quanto a imagem de Angelim. Apavorado, urinado, virou-se a jato pronto para correr para o carro e sumir dali para sempre, deu de cara com Belza nas roupas de Veraneide abraçada a Angelim, os dois olhando-o fixo, um sorriso malévolo nas pontas do lábios.

Encontrado pelos vigilantes do condomínio na manhã seguinte, catatônico, Ambrósio vive numa clínica psiquiátrica e é medicado após cada crise que tem ao ver alguém de calça jeans e camiseta branca.

Raquina régius

Era meio da manhã de domingo quando apareceu na ponta da rua principal de Nossa Senhora da Conceição o tílburi de capota vermelha, aro das rodas dourados, um luxo desconhecido na cidade e encoberto pelo pó da estrada.

Na boléia um homem muito alto, barbas brancas bem aparadas e pontudas sob o queixo, cabelos também brancos cobertos por impecável chapéu de copa alta. Pele também alva, embora avermelhada pelo sol seco do Planalto Central. Seus trajes, linho branco, destoavam do alaranjado da poeira. Ao lado do homem uma enorme gaiola de metal dourado como os aros, base circular, quase um metro de altura. Em seu interior três periquitos australianos, um azul, um verde e o terceiro, arroxeado,

Aquele conjunto ímpar chamava a atenção dos moradores modorrentos, da criançada serelepe e dos que saíam da missa sob o repique dos sinos. Em frente à igreja o cavalo preto parou sob o comando do homem. Este, tirando o chapéu, dirigiu a palavra a dona Hadilma, que varria os degraus.

- Simpática senhora, há uma estalagem nessa simpática cidade?

- Uma o quê, moço?

- Uma estalagem, pousada, hotel...

- An, sim, tem a pensão de dona Leócia. É só seguir reto e quebrar a segunda à dereita.

Enquanto a dupla conversava, a viatura foi cercada pela meninada curiosa com os bichinhos coloridos.

- Moço, arriscou um deles, quem pintou as curicas desse jeito?

- Ora, minha querida criança, esses nobres animais não são reles curicas e, sim, sagrados Raquinas regius indianos, pássaros raros e mágicos vindos do outro lado do mundo.

- Raquina réjus? Nunca ouvi falar.

- São seres raríssimos, os últimos três existentes no universo.

Dito aquilo e sabendo que a notícia espalhar-se-ia pelo lugarejo com a velocidade de notícia de morte, seguiu caminho rumo à pensão.

A viúva Leócia, com seu jeito pouco educado e nada higiênico, impressionada com a presença de insólita figura, cuidou de arrumar-lhe o melhor quarto, justo o que dava janelas para a feira livre. Coisa melhor o visitante não poderia querer.

Por duas moedas, o moleque Anilson levou sua única mala para o quarto, enquanto o homem encarregava-se da gaiola. Demorou-se no aposento apenas tempo suficiente para vestir outro terno de linho branco, lustrar os sapatos e acertar a barba com afiada navalha.

Com a gaiola na mão foi à feira. Sentou-se em um banco sob a marquise da bodega, pediu um refresco de gabiroba e esperou o assédio que sabia que viria. A algazarra das aves chamava o público aos poucos. Tímidos, mas curiosos, os moradores se aproximavam, um esperando que outro perguntasse do que se tratavam aqueles belos animais. Zé Codó, o mais conversador e sem senso de respeito à privacidade alheia, logo se fez presente à turba que já era considerável.

- Moço, quer vender os ajurucurau?

- Não, meu nobre cidadão. Primeiro, que não são ajurucuraus, mas Raquina regius sagrados. Esses nobres animais são de espécie em extinção, os últimos exemplares daqueles que já foram numerosos na longínqua Índia.

Não poderia esperar muito pelas perguntas. Iria direto à história tantas vezes repetidas e que era aumentada a cada parada, aumentando a admiração e cobiça dos que o ouviam. Se ninguém o interrogasse logo, teria que emendar a conversa, mas ali estava Zé Codó, maranhense conversador.

- São sagrados por quê? Por que eles tão acabando?

- Meu caro amigo, lhe contarei sua história. Na antiga Índia, um pobre senhor, já quase morto de fome, encontrou uma colônia desses nobres pássaros. Vendo ali uma oportunidade de ganhar algum trocado na venda deles, conseguiu aprisionar um bom número. Com bambu, construiu uma gaiola onde coubessem todos. Como já anoitecia, deixou os bichinhos descansando e foi dormir, sonhando com a ração que teria no dia seguinte após a venda.

Os olhos do público não despregavam do orador, alguns já puxavam caixotes para sentar, olhos não piscavam. Estavam entregues.

- Ao amanhecer, na boca da manhã, o pobre Raquina, esse era o nome do faminto indiano, espantou-se ao ver todos os pássaros parados em seus poleiros, todos virados na mesma direção. Esquisita situação, algo que jamais vira em seus muitos anos de vida. Virou o rosto na direção para que apontavam os bicos dos pássaros e viu a montanha onde diziam haver um tesouro de rubis, ouro e diamantes escondido por antigo marajá quando em fuga de seus inimigos.

Tesouro! Essa palavra sempre mexia com o imaginário dos simples.

Enquanto contava sua história, ao largo passava uma carroça conduzida por um negro alto, mal vestido, homem que não chamava a atenção, ainda mais quando algo muito interessante prendia a todos. A carroça era completamente coberta por lona escura.

- Sentindo um comichão na alma, o pobre Raquina resolveu seguir aquela direção. Por um momento esquecera do mercado onde venderia seus bichinhos multicores, estava intrigado com aquilo. Num farnel colocou as últimas frutas de que dispunha e seguiu rumo às montanhas. Tomou cuidado de andar em linha reta para não desviar-se da direção indicada pelos pássaros. Foi um dia inteiro de caminhada. Ao fim da tarde, quedou-se estafado e dormiu sob a copa de uma árvore.

O público agora já era incontável. Percebia entre os espectadores, pelos trajes, homens bem apessoados para o padrão local. Eram os ricos. A coisa estava cada vez melhor.

- Ao acordar, novamente viu os pássaros todos de cabeça baixa, bicos voltados para a mesma direção. Não se fez demorar, passou a caminhas no rumo indicado, passos mais largos que a subida permitia. Andou por algumas poucas horas, gaiola na mão e nada no embornal quando percebeu novo rebuliço e gritaria na gaiola. Os pássaros gritavam, todos com seus bicos voltados para uma pedra que cobria a entrada da gruta. Não havia dúvida, era uma indicação. Escondeu a gaiola entre arbustos e colocou-se dentro da gruta por uma passagem estreita atrás da pedra. Exatamente o que estão pensando, queridos ouvintes, ali estava uma enorme arca cheia até a borda de rubis, esmeralda e linda peças de ouro.

O homem da carroça coberta já sumia no fim da rua, o público deliciava-se.

- De volta à vila, Raquina construiu um castelo, comprou terras, plantou arroz e legumes e matou a fome de seu povo. Seus pássaros, porém, jamais apontaram a mesma direção ao amanhecer. Raquina imaginou que sua missão estava cumprida, não mais tinham algo a fazer por ele, por isso os vendeu, em trios, para aqueles que sonhavam com seus próprios tesouros.

A poeira deixada pela carroça do negro já se assentava.

- Por quinhentos anos, muitas fortunas foram feitas ao redor do mundo, mas, aos poucos, os pássaros foram morrendo por maus tratos ou de velhice, hoje restam apenas esses três que comprei em Marabá e há um mês eles vêm apontando uma direção para mim. Pelo rebuliço que fizeram hoje cedo, imagino que esteja perto de minha riqueza e os deverei passar adiante logo e que seja breve porque não tenho mais recursos para alimentá-los ou a mim mesmo. Ficarei rico em poucos dias e esses nobres animais de Shiva deverão trocar de mãos.

Todos boquiabertos, queriam mais e mais, porém, o visitante alegando cansaço, disse que deveria descansar para seguir o rumo da fortuna na manhã seguinte.

À noite, enquanto tomava sua sopa rala na pensão de Leócia, recebeu a visita do fazendeiro mais rico do lugar, seu Aldamiro, descendente direto dos primeiros bandeirantes que passaram por ali. O homem queria pagar qualquer preço que o visitante pedisse pelos seus pequenos pássaros. Suas economias começavam a mostrar uma diminuição, as filhas já estavam na idade de irem estudar em Goiás, as fazendas precisavam de melhorias... Os graciosos e barulhentos Raquinas regius seriam sua salvação.

O homem de linho branco regateou, colocou dificuldades, alegou ainda não poder vendê-los, ainda não achara seu tesouro, mas o homem insistia, até não ter mais o que dar para o visitante que não aceitava terras, mercadorias, apenas dinheiro, afinal essa era a tradição deixada pelo velho Raquina indiano.

Por fim, cedeu. De manhã consultaria os pássaros e, dependendo da resposta, fariam negócio. Esfregando as mãos, ansioso pelo negócio a ser feito, Aldamiro saiu quase correndo, precisava juntar todo o dinheiro que tinha e vender algumas vacas naquela noite.

Mal saiu Aldamiro, o pensionista recebeu a visita do prefeito, capitão Alcobaz. As propostas pelo pássaro aumentavam até não mais poder e cobriam as de Aldamiro. Sai Alcobaz, chega Hernildo e o leilão continua. O converseiro baixinho, quase um sussurro, se repetiu até quase meia noite. Percebendo que ninguém cobriria a proposta de Godofredo, o homem de branco manda Anilson atrás do fazendeiro com urgência.

Não demorou, lá estava o comprador com duas sacolas de couro transbordando de cédulas e moedas. Acordara o banqueiro e o fizera quase esvaziar o cofre do banco.

Feita a venda, o visitante lhe deu orientações de como alimentar as aves, como deveria evitar o excesso de sol e barulho, a que horas deveria fazer a consulta aos bichinhos e todos os demais cuidados a serem tomados.

Acompanhou Godofredo até a porta e ali ficou até vê-lo sumir na segunda esquina.

Numa urgência de médico, mandou que Leócia lhe fechasse a conta, pagou, levou sua arca para o tílburi que atrelou ao cavalo branco com a maestria e rapidez de poucos e pôs-se quase a galope para fora da cidade, pelo norte já que todos imaginavam que ele seguia para o sul por conta de seu caminho de chegada. Não dormiria e nem descansaria até estar muito longe, onde seu parceiro o encontraria numa carroça toda coberta e carregada com várias gaiolas com trios de periquitos australianos.

Limite

Foi aqui nessa casinha que aconteceu, como acontecia todos os dias, por muitos dias. Da janela, todo final de tarde, Geraldino via Sanderlice aparecer lá no alto da ladeira, a via descer e desaparecer antes da subida seguinte que demorava mais de duas horas, mais de três. Ela chegava ofegante, descabelada e com cheiro de suor de homem.

Geraldino não reclamava nem tinha tempo de reclamar. Recebia murro na orelha, pisão nas partes, gritos no ouvido porque a janta estava fria, porque a casa estava suja, por motivo nenhum, apenas por hábito.

No início a vizinhança estranhava. Como aquele homem agüentava tudo calado? Depois se conformou com o conformismo de Geraldino. A cada boca da noite, a mesma coisa. Geraldino via Sanderlice descer a ladeira e esperava a subida demorada para o lado de cá. Em quatro épocas diferentes a viu subir buchuda.

Nasceu o gazo com a cara de Judécio; nasceu um indiozinho parecido com Tucuna; nasceu um amarelinho de olhos rasgados e cabelos iguais ao do Katedi; por último a esposa pariu um negrinho, cópia perfeita de Cateu.

Geraldino nunca reclamou, não tinha tempo. Antes de falar, lá vinha o tabefe, o chute no saco, os gritos. Quando Sanderlice estava pesada em sua prenhice e se movimentava com mais dificuldade, apelava para o cabo da vassoura, a corda da rede ou qualquer coisa que causasse dor e estrago. Geraldino, calado.

Um dia, o marido lá, pôr-do-Sol, na janela, vê Sanderlice descer a ladeira de mãos dadas com Ordélia. Estranhou na primeira vez; na segunda, desconfiou; quando viu o beijo, se destemperou.

Madou os quatro filhos para a casa dos avós e deu uma surra em Sanderlice que ela jamais esqueceria. Dois meses de cama, pernas, braços e cara quebrados de tanta pancada pela sem vergonhice de trocá-lo por uma mulher.

Escada a Baixo

Foi um garoto criado em berço de ouro e acabado no gueto de lodo.

Pietro Saint-Arnour Friedrich ganhara um nome bem ao gosto europeizado dos pais, gente rica das terras roxas, plantadores de café e de vacas leiteiras holandesas, lógico. Assim fechavam o ciclo. O pai, Antenor, tinha planos de plantar trigo em alguma terra a ser comprada no sul, assim venderia o breakfast completo.

Ao pimpolho todos os luxos, desde a ama de leite até o enxoval de seda chinesa; dos tutores, não apenas professores particulares, ao tratamento semanal de beleza completa, cabelos, pele e unhas; dos passeios às estâncias minerais às aulas de piano e valsa. Um pequeno lorde no calor interiorano que não dispensava o suéter de cashemere.

A mãe, refinada dama estudada na França, fazia questão dos mimos. O pai, sujeito mal talhado para as finas rodas aceitava, não discutia. Dera o golpe do baú, teria que pagar um preço, fosse qual fosse, desde que não se indispusesse com a família da esposa a quem dedicara todo o tipo de puxação de saco e agrados até conseguir sua confiança. Pietro não trabalharia na lida do campo, de qualquer maneira, não precisaria se sujar de terra e nem tratar com os peões. Tanto melhor, assim ninguém meteria o bedelho nos negócios que fazia.

Quando o garoto fez quinze anos, o pai insistiu em mandá-lo para o internato na capital. Argumentava com a esposa que sua educação estaria completa, que se envolveria com pessoas de sua classe e categoria, ficaria distante daqueles bugres e trogloditas doidos para enfiar uma filha mal cheirosa sob as cobertas do rapazola. Tanto falou, dia após dia, que terminou convencendo madame Therèse.

Acabou janeiro, o garoto voltando de suas férias em Bariloche, sequer desfez as malas. Partiu na manhã seguinte para São Paulo. Seguiram-se três anos de internato, aulas de piano e dança, francês e italiano, compras e saraus, descidas a algum resort na praia com colegas da high society, filhos de industriais, senadores, generais e almirantes, a crème de la crème.

Saudades de casa? Qual o quê! Umas cartinhas e visitas sazonais da mãe curavam isso rapidinho, ou um passeio demorado pelas lojas de grife. A mesada era maior que a folha salarial de todos os professores que tinha. Nada mais contava. Provavelmente as fazendas iam muito bem, o pai enriquecia e não esquecia dele, embora jamais um telegrama, um telefone, qualquer notícia.

Um dia a bomba.

Madame Therèse havia morrido. Antenor envolvera-se com uma amante argentina perdulária e luxenta. Junto com a missiva o documento registrado em cartório, firma reconhecida e deferimento do doutor juiz, três testemunhas idôneas: Pietro recebia sua emancipação. Nada mais de mesada, nada mais de paparicos, a rematrícula no internato não fora confirmada.

Procurou advogados, mas lhe tiraram as esperanças, estava por sua conta e risco. Muitas contas, diga-se de passagem, e riscos que não conhecia.

Expulso dos alojamentos, mudou-se para um hotel, o mais luxuoso, lógico. Uma semana bastou para perceber que não teria como manter-se ali. Começava a descer os degraus sociais, de hotel em hotel até chegar a uma pensão no subúrbio. Paralelamente a isso, procurava emprego de dia, jogava-se na esbórnia à noite. Os amigos ricos sumiram, as moçoilas casadoiras desaparecerem com a fumaça de seu último cigarro importado. Os convites para festas e saraus, sumiram junto com o carteiro.

Num desses bares, que também diminuíam em qualidade, bêbado, desesperado e solitário, assistiu a um espetáculo de dança, uma pantomima esdrúxula, na qual três rapazes faziam as vezes de mulheres e ocupavam-se em disputar as atenções e o dinheiro de um rapazola bem apessoado e de algibeira gorda.

Algo lhe atraiu ali. Não sabia se a desenvoltura dos travestis ou a beleza do rapaz disputado. Envergonhado, percebeu que se excitara com todos os quatro.

Voltou na noite seguinte e arrumou um jeito de ir ao camarim depois do show. Na tristeza em que andava, a alegria do quarteto o contagiou. A princípio tenso com a libertinagem que sentia nos abraços, pegações e beijos do quarteto entre si, logo viu-se com vontade de formar um quinteto.

Não tinha mais nada a perder na vida, a não ser as culpas judaico-romanas que lhe foram incutidas desde a infância. Mas aquela infância fora para outra vida adulta, não a que levava agora. Um pária.

Foi aceito no grupo. Recebeu lições de como vestir-se e despir-se, de como andar e dançar, do que beber e com quem sair.

Tornou-se, em pouco tempo, a estrela das noites de quinta-feira, a noite dos motoristas e motorneiros. Quando não está no palco ou nos braços de um homem fedendo a suor e tráfego, está trancado no quarto com seu narguilé de ópio.

O Inferno Antes do Outro

Mais um dia de caos no Hospital Zulmiro Sedósio, nome de antigo, corrupto e incompetente prefeito (que me desculpem a redundância), batismo ideal e apropriado para uma casa pública de serviços de muito duvidosa qualidade.

Encolhido numa desconfortável cadeira de plástico um homem amarelo reclamava baixinho das dores no peito, ao seu lado uma jovem senhora maltratada pelo tempo limpava o nariz de um bebê que teimava em chorar no meio daquela catarrada esverdeada. Jogado a um canto um homem com um buraco na canela por onde se via o branco da tíbia quebrada. A prenha de gêmeos gemia na maca, pernas abertas esperando a hora, como se a natureza fosse esperar os médicos e formulários. A mocinha com conjuntivite, o rapazola hipocondríaco, a velha com a língua solta, o bêbado de cor indefinida e o fígado estufado... Nem num circo de Buñuel existiriam tantos tipos bisonhos.

Escorados no balcão, para protegerem a atendente da agressão de algum descontente, , dois seguranças. Ao lado da porta, outros dois. Médicos não apareciam, apenas uma ou outra enfermeira com seu jaleco branco e sua cara de que as nuvens deslizavam sob seus pés e nada as atingia, superiores às mazelas dos pobres mortais desgraçados espalhados pelo salão. Médicos? Esses devem ter uma entrada secreta, um teletransportador, ou moravam numa cartola, ninguém os via. Na contagem final, eram vistos mais guardas do que médicos ou enfermeiros.

Aquele povo jogado de qualquer jeito pela sala lotada, escura, sem ventilação e recheada de vírus e bactérias até que queria, mas de onde tirar forças para brigar, contestar? Sem falar do medo de depois serem ainda mais maltratados por um doutor vingativo e onipotente.

Muito de vez em quando a atendente chamava por um nome. Se o convocado conseguisse andar ou se arrastar, ia até o balcão de onde era encaminhado por um corredor de azulejos até um dos consultórios. Se não conseguisse se locomover, dois indelicados mastodontes o atiravam sobre a maca ou na cadeira de rodas como se fosse um saco de batatas e os despejava numa daquelas saletas claras e ventiladas.

Num mesmo instante foram chamados a grávida com a bolsa rompida e o homem de perna quebrada. Os mastodontes siameses tiveram que se separar. Um empurrou a maca da mulher, o outro atirou o homem sobre uma cadeira de rodas. Nem gemeu, desmaiou de dor.

Atendidos, operados e internados para a recuperação, a mulher acordou com três pinos de platina na perna e o homem com um curativo cobrindo a cesariana.

De Braço Dado Com a Noite - Parte 3

Estava entregue à matilha.

Morderam, chuparam, lambuzaram, comeram e recomeram. Alternavam-se nas funções enquanto sua única função era ser passiva e obedecer Às ordens, nunca amáveis. Morde aqui, chupa ali, abre mais, fecha, vira, de ponta cabeça, esfrega, alisa, geme, grita, xinga...

Com aluguel a pagar, conta na boutique a saldar, telefone em vias de ser cortado e sem ele o trabalho sumiria, Adalgiza Bright, codinome criado inspirado na miss Brasil misturado com um cintilante inglês, sujeitava-se.

Rijos por conta da overdose de excitantes químicos, os algozes só descansaram por falta de preparo físico, facilmente denunciada pelas barrigas salientes e flácidas.

Aliviada, Adalgiza preparou-se pra abandonar sua masmorra. Tentou se levantar do carpete surrado onde havia sido abandonada como um animal surrados, mas foi impedida pela para grossa e cabeluda que a empurrou de volta ao chão.

- Calma aí, piranha. Isso é apenas nosso recreio. Te arrasta até ele.

O “ele” ao qual o outro indicava era o mastodonte dos três, sujeito enorme com barba cerrada que deixara marcas na pele fina de Adalgiza. “Ele” estava ajoelhado com um pires na mão. Dentro do pires um pó branco que ela sempre evitara provar, mas que sabia bem do que se tratava.

Tentou não ir, não se sujeitaria àquilo, mas o pontapé nas suas costelas demoveu-a do intento de rebelar-se. Naquele pardieiro fantasiado de hotel três estrelas, sabia que seus gritos por socorro não seriam atendidos. Arrastava-se devagar, pesando o que seria pior, levar uma surra pela desobediência ou correr o risco de perder a consciência depois de provar a droga.

Não chegara a uma conclusão quando viu-se puxada pelos cabelos e o rosto enfiado no pires.

- Cafunga! Cafunga, vaca! Limpa o pires!


*Esta é minha parte num conto coletivo com mais três escritores.

O Conto

Cabisbaixo, mãos nos bolsos, anda sem rumo seguindo as calçadas. Chuta latinhas e pedregulhos, à toa, madrugada a dentro. Ficara até aquela hora, duas e meia, tentando escrever o conto encomendado pelo jornal literário. Até achou que havia conseguido um tema - gêmeos que se reencontram anos depois da separação e se vêem como num espelho, mesmo gosto de vestir, mesmo corte de cabelo, mesmos gestos. Terminou caindo nos clichês e desistiu.

Fumou, tomou uma taça de vinho enquanto folheava Machado de Assis em busca de inspiração, mesmo que fosse plágio. O editor aguardava o e-mail até as oito horas da manhã seguinte, ele não poderia falhar. Mais do que a graninha que deixaria de ganhar, feriria sua reputação ainda iniciante de bom contista, jamais seria convidado por aquele grupo editorial e isso não era pouco. Quando alguém a quem todos bajulam e com quem gostariam de trabalhar, não o aceita mais, a praga se espalha e todos os demais se recusam a arriscar com um rejeitado. Ele seria o rejeitado.

Se plagiasse Machado, poderia usar do argumento, quando descoberto e desmascarado, que havia sido inconsciente, provavelmente fora traído pela memória que lhe apresentou o velho conto revestido como algo novo. Não ficaria queimado no mercado, apenas chamuscado, mas com a vantagem de que ganharia tempo para compor algo realmente original.

A idéia demorou pouco. Não se sujeitaria a algo tão desonesto e tacanha, embora, por si, a idéia já era bem original. Isso poderia dar conto.

Tentou, mas as palavras fugiam quando se sentava em frente à tela brilhosa. A idéia estava viva, sentia-a pulsar nas circunvoluções cerebrais, mas se perdiam como em um labirinto. Não desenvolvia, andava em círculos. Pegava papel e lápis e ensaiava uma tempestade cerebral: o personagem tinha que escrever um conto; adiara até a última hora desprezando os quinze dias que lhe foram dados; na véspera de enviar os escritos para o editor, a inspiração não vinha e ele se exasperava; resolvia escrever um conto sobre isso, o que para ele era uma crônica-desabafo, para os leitores seria um conto. Até aí tudo bem, mas o que acontecia depois? Nada! Não conseguia desenvolver.

A taça de vinho virou uma garrafa, o cigarrinho do descanso virou uma carteira de inquietação, a tempestade cerebral não passou de chuvinha de verão, o início da noite virava silêncio nas avenidas. Melhor tentar outra coisa. Sabia que não era um tacanha qualquer com aspirações de escritor, sabia que tinha talento, tanto que o maior editor de literatura de que tinha conhecimento lhe encomendara um conto, não seria, portanto, tão difícil encontrar um tema.

Pegou o álbum de fotografias que levava a cada mudança, entre as muitas que tivera pela vida. Imaginava que revendo os amigos de infância, os passeios de escola, as namoradas já esquecidas e casadas e descasadas, os parentes chatos em dias de Natal, os colegas do tempo de bancário... Alguma história viria a ser contada. Talvez transformasse em ficção alguma realidade desaparecida e amarelada no tempo.

Mãe e pai, a irmã Zilinha, os primos dos quais mal lembrava um ou outro nome, Tramandaí, Neve em São Joaquim, Bonito e mergulho no rio, Brasília e o primeiro porre na rodoviária, Helena e o primeiro beijo, Sara e o último sexo, Belo Horizonte e o carro capotado, dez pontos da cabeça e costelas quebradas, Salvador e o primeiro abadá, o primeiro assalto com direito a ficar nu em Maceió, Paris e a primeira francesa... Via que não tivera uma vida dura, que conhecera mundos e gentes, que fizera o que a maioria dos mortais jamais conseguiria fazer, que tivera bons pais que lhe forneceram isso tudo e mais do que merecia. As maravilhas de uma vida bem vivida não lhe davam, porém, uma única historinha para contar.

Abriu a segunda garrafa e a última carteira de cigarro. Lembrou de João Ubaldo fazendo a auto-crítica dos tempo em que bebia: bêbado escrevia coisas maravilhosas que, sóbrio no dia seguinte, concluía serem lixo. Com o tempo se esvaindo como passageiros do metrô no rush, não se queixaria de escrevesse uma das maiores porcarias literárias da humanidade, mesmo que o álcool lhe dissesse ser uma obra-prima. Prometia-se não revisar, sequer reler, desde que nascesse uma história completa.

Bebia, escrevia, relia e apagava. Ainda não estava suficientemente bêbado para desprezar a autocrítica. Na maioria das tentativas, nem autocrítica era necessário, simplesmente não conseguia desenvolver a narrativa.

Fumava e esquecia do computador, apelava para papel e caneta. Eram tantos os rabiscos, tantas as idéias mal nascidas e abortadas depois das primeira linhas que já se amontoavam ao redor do cesto as bolinhas de papel. O lápis já fora apontado incontidas vezes, resumindo-se a um toco que nada gerava.

A última taça de vinho e o último cigarro. Recusava-se a tomar café, refrigerante, chá ou qualquer coisa minimante saudável, queria maltratar-se, autoflagelação por causa da esterilidade mental. Que viesse a má inspiração alcoólica de Ubaldo, pelo menos isso. Que viesse o espírito do pior contista morto reencarnar em si, desde que tivesse algo a psicografar.

Jogou a guimba do cigarro também no cesto entulhado de papel, recolheu o casaco mal jogado no encosto da poltrona e saiu em busca de álcool e cigarros. Nunca fizera isso, mas se desse de cara com um traficante, compraria uma droga qualquer se o vendedor prometesse que ela abriria o cérebro como dizem os junkies.

Cabisbaixo, mãos nos bolsos, anda sem rumo seguindo as calçadas esperando surgir uma porta de boteco aberta àquela hora. De repente, o estalo. Veio-lhe clara e aberta a história do escritor estéril. Via como se num filme o desenrolar da história, seu final surpreendente e engraçado. Apalpa os bolsos em busca de uma caneta, o toco do lápis – precisa anotar antes que perca -, nada! Volta-se correndo em direção a casa, correndo pelo meio da rua que tem menos obstáculos que as calçadas acidentadas. Atrás de si ouve o motor acelerado e as sirenes, salta de volta para a calçada evitando o atropelamento pelo carro dos bombeiros. Recobrado do susto, retoma a corrida, repetindo mentalmente o grande final do conto ainda em gestação.

Dobra a esquina e estanca lívido. Os bombeiros atiram água na casa em labaredas altas, vítima de um cigarro aceso na lixeira.

Bolero

As sextas-feiras eram cruéis, lentas para Divanilma, as horas não passavam. O expediente da enfermeira não se acabava. Quando, por fim, o relógio marcava seis horas, era a primeira a bater o ponto de saída e correr para o ponto em que a espera pelo ônibus era uma eternidade.

Descia a duas quadras de casa e percorria a distância sem sentir nenhum cansaço nas pernas que trabalharam de um lado para outro durante todo o dia. Ao abrir a porta, o casaco já estava na mão, o sapato desafivelado era jogado em qualquer canto, da bolsa só retirava a carteira que transferia para outra bolsa menor, de alça fina e longa. Despia-se apressada em direção ao banho. O melhor xampu, o sabonete especial que não usava em dias de trabalho, não ficava bem uma enfermeira rescindindo a sândalo e amêndoas enquanto limpava urinóis e fazia curativos.

O perfume caro, metade do salário, a saia rodada e colorida com a blusa de seda vermelha passadas de véspera e deixadas sobre a cama antes de sair para o batente, a meia-calça sóbria e os sapatos de salto agulha que a deixavam mais alta, elegante e com leveza no andar, andar de modelo, como ela gostava de dizer.

Um olhar demorado e analítico no grande espelho. Nada podia estar errado, nem mesmo um fio de cabelo. Uma olhada no relógio de parede, havia tirado o de pulso, não achava elegante uma dama usar relógio em tais circunstâncias, além de não querer dar bola para o tempo depois que saísse.

Caminhava pelas ruas de paralelepípedos uma nova Divanilma, despertando olhares enquanto se dirigia para o baile de Valvido, onde dezenas de cavalheiros, já impacientes, a esperavam e dançavam com qualquer uma para que a espera fosse menos dolorosa. Cada um alimentava a esperança de que essa noite teria sorte de tirá-la para dançar.

Para consolo das rivais, nenhum conseguiria. Sabiam que Divanilma esperava o par perfeito, o homem com e para quem dançaria para o resto da vida.

Sua mesa à margem da pista estava pronta como sempre. Valvido a recebia na porta, consorte com sorte e vítima das invejas masculinas. A conduzia até a mesa, lhe puxava a cadeira e, célere, fazia sua cuba libre com mais cola e gelo que rum.

O passo seguinte era o cortejo dos dançarinos solicitando seu par, educadamente dispensado.

Naquela sexta-feira, porém, um homem novato no baile, desavisado da história de Divanilma, não temeu a dispensa já esperada pelos demais.

Paletó e calça brancos, camisa vermelha contrastando com fina gravata azul, sapatos pretos primorosamente lustrados, Ferizódio, encostado com os cotovelos no balcão, encantou-se com a morena desde que a viu entrar, braços dados com Valvido. Observando suas ancas balançantes e as batatas das pernas fortes e grossas equilibrando-se graciosamente sobre os saltos finos, Ferizódio percebeu o potencial do par perfeito para o bolero.

Com a ginga segura de quem sabe usar muito bem as pernas na pista, Ferizódio aproximou-se. Com exceção do bolero, silêncio total, dezenas de pares de olhos observavam sua aproximação, inclusive os de Divanilma. Os homens torciam para ela livrar-se do invasor ousado; as mulheres, enciumadas, não queriam ver mais um homem fisgado pelo charme passivo de Divanilma.

- Bela senhorita, Ferizódio, seu criado. Muita satisfação.Enquanto apresentava-se, tomava a mão da moça e a beijava.

- Tão bela dama dar-me-ia o prazer de acompanhar-me numa dança?

Dançaram juntos pelo resto da noite e há vinte anos continuam dançando todas as sextas-feiras no baile de Valvido.

Perdão

Vanderlânia, minha flor, aceita eu de volta.

Tu sabe que tu é única no meu viver, as outras é apenas passatempo, quero dizer, eram, acabei com todas, só tu me interessa.

O pobrema é que a carne é fraca e o diabo atenta e eu, que também sou filho de Deus, sô mais tentado ainda pelo Cão que quer os homem bom como eu no exército dele. Mas eu me arrenego a ir pro lado dele e voltei pro bom caminho, minha santa.

Salve aleluia, salve!

Pra tu e por tu eu vou fazer tudo, pra tu eu vou viver cada segundo e fazer tudo que tu quiser pra te deixar feliz. Eu capino o quintal que deve de tá uma floresta, como já prometi antes e não fiz, dessa vez eu faço; eu vou almunçar com tu na casa da tua mãe nos domingo e fazer de conta que eu adoro ela, do jeito que tu sempre quis que eu fizesse e sempre me faltou corage; prometo consertar o telhado e arresolver aquelas pingueira na cunzinha, no banheiro e no nosso quarto, mesmo correndo o risco de me estabacar lá de riba e quebrar a cabeça; vou consertar as perna da cama das criança, mesmo sabendo que sou ruim de martelo e arriscar perder a cabeça do dedão numa martelada errada; garanto a você que acordo cedinho todos os dia, preparo o café e levo as menina pra escola; juro que vou te levar pra praia todo final de semana que não chuver e a gente nem vamos levar a farofa de carne de sol e a galinha assada. Tu vai comer é aqueles camarão grandão e o peixe frito dos bom que eles vende lá; vou trabaiá de sol a sol, final de semana e feriado pra nunca faltar nada pra tu e pras nossas filhas.

Se eu esqueci de prometer alguma coisa pra te fazer feliz, pode me alembrar que eu prometo tomém. Tudo o que tu quiser, minha nega.

Prometo até ir com tu pros culto da igreja e tratar o pastor com todo o respeito e cortesia. Vou pras festa da igreja, seguro o estandarte, aprendo os hinos e todas as oração, participo do coral... Faço todas as obrigação e ainda pago o dízimo, tudo por tu, muié que amo mais que tudo no mundo.

Mas eu vou poder tomar uma cervejinha com os amigo de vez inquando, vou não? Prometo que num vai ter niuma muié com nós, só os homem, nada de muié!

Sei não, alguma coisa me diz que tu num vai aceitar isso, num vai creditar nim eu...

Quer saber? Esquece tudo que prometi. Quero voltar mais não. Vou ficar sozinho mesmo, sem tuas aporrinhação no pé das minha zureia o dia todo, todo dia.

Fica com Deus e seja muito feliz. Dá um beijo nas criança e diz que eu amo elas.

Daquele que foi teu um dia, Brenolivaldo.

O Preço

Àquela hora da madrugada o passeio era desaconselhável, mas a caminhada era inevitável. O último navio havia sido carregado para seguir rumo ao nascer do dia, a ele, Ademar, não havia alternativa, recebia ordens e as cumpria da melhor forma, seu pão e leite dependiam disso. Se o navio precisava receber a carga, ele e os demais trapicheiros, o faziam, fosse de dia ou tarde da noite, isso pouco contava, o que importava era o dinheirinho aquecendo a algibeira.

Fora o último a se desocupar, os companheiros já haviam saído depois de receber a féria do dia e talvez se encontrassem em algum mafuá tomando cachaça e passando as mãos nas putas. Ademar tinha uma missão a mais, desligar os guindastes, entregar as chaves ao preposto das docas e passar no escritório para receber o dinheiro acumulado em dois dias diretos de muito suor e pouca água.

O silêncio do cais só era arranhado pelo marulho batendo no muro de arrimo. Por economia e falta de necessidade, poucas lâmpadas iluminavam o pátio; o vento, ao balançar as lâmpadas incandescentes e amarelas, provocava estranheza.

Desde que o corpo de Amarildo foi encontrado entre containeres no dia seguinte ao pagamento, sem um tostão nos bolsos e a garganta cortada de lado a lado, o medo tem feito a turma sair junta, uns zelando pelos outros. Nessa noite, porém, o cansaço coletivo não permitiu que os demais esperassem por ele.

Ouvia o eco de seus sapatos vindo dos caixotes enormes, das paredes, nos cascos altos dos navios em espera. Nenhum outro som que seus ouvidos assustados e atentos tentavam encontrar soltos no ar da quase madrugada. No máximo um chiado de rato ou uma pequena peça, um pedaço de metal, um porrete improvisado de madeira se arrastando, provavelmente pelos mesmos ratos.

Tentou andar mais rápido, sair dali acelerado, mas a reverberação das pisadas se confundia com os demais sons que pudessem surgir, não poderia ouvir o inimigo de punhal que esperava por ele e seu suado pagamento. Reduziu o ritmo das passadas, alargando os passos. Se alguém o visse caminhando assim, imaginaria que contava o tamanho do caminho que percorria. Ninguém o observava, tinha certeza, nem mesmo o ladrão. Estava assustando-se à toa.

Súbito frio na espinha e estancar das pernas ao ver surgirem duas bolinhas verdes piscantes por detrás de uma caixa de ripas. Apenas os olhos de um gato em busca de comida e diversão refletindo as luzes que vinham das costas de Ademar. Entre dentes, para não se assustar ainda mais, xingou o gato, “vai assustar a mãe!”. Respirou fundo de alívio e tensão. Voltou à caminhada medida e larga.

Já olhava o portão que permitiria sua passagem para a rua. Longe, mais longe do que nunca esteve. Apressava o passo novamente ou se tranqüilizava esperando o portão se aproximar em seu próprio ritmo?

Evitava olhar para os lados, medo de ver o que não queria. Qualquer sombra poderia ser confundida com o bandido que o cercava. E se este serzinho desprezível e odioso aparecesse à sua frente, punhal em punho, ou seria uma peixeira?, o que faria? Entregava tudo e se fingia de morto?, se acovardaria?, enfrentaria o sujeito com a força de suas mãos calejadas e fortes?. Era forte, mas nunca brigara na vida, não teria chance com as mãos desarmadas, ainda mais contra um assassino sem qualquer hesitação ou escrúpulo. À direita, sob a empilhadeira, viu um pedaço de vergalhão (como essas coisas iam parar no pátio das docas? Sempre se perguntava isso quando encontrava algo que não combinasse com o cenário). Desviou-se da rota, ajoelhou-se ao lado da máquina e esticou o braço para pegar sua arma improvisada. Ao pegar o metal, a vista desviou-se para as botas do outro lado do veículo. Dois pés, tudo o que via, parados de frente para si, como se o olhando nos olhos. Serpentes negras de olho na vítima.

Esqueceu-se do vergalhão, soltou um grito de socorro e saiu em carreira com seus mais de cem quilos em direção ao portão que teimava em afastar-se.

Sentia o quente da urina descer pelas pernas enquanto corria, ou tentava, gritava como uma menininha que via uma aranha em sua casinha de bonecas, não tinha tempo de envergonhar-se, apenas corria e gritava. Pensava passar pelo portão como um centro avante que dribla o beque, bateu o ombro, rodopiou sobre o próprio eixo vertical estatelando-se na calçada. O ombro doía, tentou apoiar-se nesse braço para se levantar e continuar a corrida até o boteco onde imaginava que se encontravam os colegas. A dor aumentou, a força não veio, bateu a cara no cimento. Já imaginava o algoz a poucos metros, tentava arrastar-se como um soldado sob arames farpados com a ajuda de um único braço, era muito peso para um só braço. A eternidade se resumia naqueles poucos segundos. A voz já não saía, garganta seca, pulmões ardendo.

Sentiu a pisada forte nas costas empurrando-o de volta ao solo. Na nuca o frio da ponta de uma faca que imaginava brilhante sob a luz do poste. Ninguém o salvaria? Onde estavam os vigias? Fez força com o braço bom para tentar levantar-se, mas a pisada o imobilizava. Morreria como um porco no punhal do magarefe?

“Pai nosso que estais no céu...”, baixinho pedia proteção. O pé que o continha foi substituído pelo joelho e uma voz rouca, num sussurro, acompanhada por um bafo de cigarro barato, ao pé do seu ouvido:

- O dinheiro.

A resposta num filete sem força:
- No-no bolso.
- Pega.
- Que-brei-o-bra-bra-ço.
-Pega!, percebia que a voz vinha com raiva.

A careta de dor foi inevitável. Via sua única chance de sair com vida dando o dinheiro que penara para ganhar. Não era pouco, pelo menos para seu padrão de fortuna. Dois dias inteiro de trabalho, quatorze horas seguidas em cada dia. Tentava controlar os movimentos limitados pela dor. As pontas dos dedos já tocavam as cédulas quando sentiu o corpo do bandido cair pesado, inteiro sobre o seu, sufocando-o. Veio o alívio de sentir o corpo sendo retirado de sobre o seu. Vira de barriga para cima e vê seus companheiros atirando o corpo como faziam com os fardos de algodão nos porões dos navios. O baque surdo do bandido inerte na calçada.

Com um pedaço de madeira numa das mãos, Olivério lhe esticava a outra como auxílio para levantar-se. Seis estivadores formavam um semicírculo com ele e o corpo desmaiado no centro.

Levantou-se com a ajuda de dois deles. Antes, porém, de mostrar sua gratidão ou mesmo odiar aquele que o mataria, recebeu de Olivério a sentença inesperada:

- Tua vida custa mais do que você ganhou hoje. Passa pra gente.

Despedida

Dorinha, faz essa cara de pena, não. Não careço de pena. Vivi o que pude viver e não foi mais pior nem melhor do que a vida dos que vivem bem desde a nascença. Cada um tem sua cruz, amiga, ou muitas cruzes, e eu tive as minhas. A vida me escolheu, depois, escolhi a vida.

Se a vida levou minha mãe quando nasci e meu pai pelas estradas antes d’eu nascer e, mesmo me deixando sozinha, sem leite e sem banho, ela não quis me levar, estava dizendo que, já que eu fiquei, vivesse tudo o que tinha que viver. E vivi, Dorinha.

Não levo nada e nem deixo qualquer coisa pra ninguém, mal tive pra mim, pra meu sustento roto, como deixar algo para os outros? Bem que eu gostaria de ter uma casa, jóias caras, uma terrinha, um bangalô na praia... Nada disso pro meu luxo, mas pra deixar algo bom pra você, amiga, que me deu comida, teto e carinho nesses últimos tempos, tempo mais ruim que todos os tempos ruins que já vivi. Deixar alguma coisa de boa para Philóphio, coitado do Philóphio, vinte anos de cadeia pra me salvar do capiroto do Alesso. Se não fosse Philóphio chegar com a peixeira, Alesso tinha me matado, tudo por causa dos dez reais que ele não quis pagar pela trepada. Nunca mais fode ninguém! Mas fodeu com a vida do pobre Philóphio por vinte anos. Pobre Philóphio...

Queria deixar algo bom pra Zineide também. A melhor amiga que eu poderia ter naqueles tempos. Não sei o que é ter mãe, mas sei o que é ser mãe, mesmo sem saber quem era o pai do meu filho que a morte não deixou nascer. Eu era bonita, Dorinha, os homens babavam para as minhas coxas, pra minha bunda, pros meus peitos grandes e duros. Eu não podia perder a chance de ganhar dinheiro com a única coisa que eu tinha. Não fazia gosto ruim, foram muitos homens, de toda cor, cheiro, gosto. Se pagasse, eu ia, e fui muito. Ganhei uma fortuna naqueles tempos. Mas Deus não gosta de mim, Dorinha. Bem que ele poderia me dizer por causa de quê me tratou como bastarda.

Justo quando eu estava podendo cuidar de mim, dinheiro no banco, roupas novas e bonitas, casa pra morar, de um lado ganhei um filho, de outro, a doença. Daria tudo se morresse eu e ficasse meu filhinho que nem nasceu. E a Zineide foi quem me deixou viva.

Eu tinha jurado pra ela: Zineide, não quero mais ser rameira. Se Deus me curar e salvar meu filho, saio da vida, arrumo um emprego e vou viver pra ele. Deus levou meu bebê e quem me salvou foram os remédios que a Zineide comprava com o dinheiro que ela tinha pra comer, depois de eu ter gastado tudo com os médicos e laboratórios. Deus não fez a parte dele, eu não tinha que fazer a minha.

Agora vem essa outra, sem cura e sem jeito. Pra quê tanto remédio se não se pode matar a bicha? Vou tomar nenhum! Não vou mais dar dinheiro pra médico, nem pra farmacêutico, nem pra laboratório. Nem o meu, nem o seu! E não vou mais acordar de madrugada para entrar na fila sem fim da previdência. Se não há cura, pra quê sacrifício?

Tenha dó não, Dorinha. Já sou uma velha nesses meus trinta e dois anos. Não vê as rugas na cara? As da alma são mais fundas. Eu morri em vida, amiga. Se há pecado, tenho crédito, muito crédito. Sofri mais do que pequei. Eu mereço o céu.

Mas não quero ir pra cantar hosanas e passear de mãos dadas com os anjinhos – entre eles deve estar o meu que não nasceu -, quero ir para encarar Deus nos olhos e exigir que me responda por que me odiou tanto.

Piroga e Tiririca

Na liberdade da infância, Iraquitã e Belson eram donos do domingo. Acostumados com a mata e os animais não temiam os perigos.

No pequeno distrito de Parintins, onde moravam, eram donos e reis, como cada curumim e cunhataí tinham seu próprio reino.

De manhã cedinho pegaram a piroga que não iria à pesca com seus pais e se aventuraram, anzóis e zagaias a bordo, para o grande rio. Já se achavam homens em seus dez anos. Os igarapés já não lhes tinham mistérios. Mas os segredos do pará ainda eram segredos para eles. As ondas altas naturais e as marolas dos rastros das catraias ainda não conheciam.

Ambos tremeram de receio, não sabiam o que era medo, ao chegarem ao meio do rio e perceberem que a água que entrava rápido exigia grande esforço e velocidade nos braços para ser retirada, mas não passariam por fracos e nada disseram de sua caruara uma para o outro.

A terceira vaga encheu a canoa e suas providências não deram conta para evitar o naufrágio.

- Nada, Belson, nada!

O instinto os guiava, antes que as palavras combinassem, em direção à praia de onde partiram, mas não conheciam os segredos da correnteza. Mais de três quilômetros da margem, as águas os levando rumo ao mar que não conheciam senão do Atlas Escolar milhares de outros quilômetros adiante, e teimavam em voltar ao ponto de partida.

Por quarenta minutos nadavam lado a lado, mas o mar doce os separou numa braçada de Iara.

Iraquitã desviava dos troncos que vinham boiando sabe-se lá de onde, tentava avisar o amigo, mas a voz não saía; tentava avistá-lo, mas as paredes de água que se alternavam não permitiam. Agora, admitia, estava com medo, medo de nunca mais ver Belson, nome dado em gratidão ao missionário canadense que ajudara sua mãe no parto. As lágrimas de Iraquitã aumentavam o volume do rio.

Precisava chegar à margem, à vila e avisar aos adultos para procurarem o amigo, mesmo que isso lhe custasse uma surra de cipó.

As forças vieram do fundo d’alma. Remava seu corpo desengonçado com toda a força que seus braços finos permitiam. Imaginava seus pés serem nadadeiras de cauda do tucunaré e nadava, nadava, lágrimas juntando-se às águas do pará, nadava, nadava...

Muito tempo se passou até alcançar as tiriricas da beira-rio. Não havia tempo para descansar, todo o corpo, porém, exigia. Tentou levantar-se, as pernas se negavam. Nas tentativas frustradas de ir em frente desmaiou e, postado sobre aquelas folhas que pareciam navalhas quando molhadas, ficou desacordado.

Sonhava com o amigo perdido nas águas que amava, nas águas que lhe davam o peixe e as brincadeiras. Não havia mais nada a fazer senão entregar-se à inconsciência, por mais que pelejasse contra.

Acordou com a mão suave lhe arrumando os cabelos pretos e lisos. Suas pálpebras pesavam mais que um cacho de pupunha, mas conseguiu abri-los e viu que já era noite. As dezenas de vaga-lumes aproximavam-se e viravam lamparinas. A mão que o afagava e o colo que o abrigava eram de dona Jussara, mãe de Belson.

Olhando os olhos negros de Jussara, mais escuro por falta de estrelas no céu negro de nuvens, chorou e pediu desculpas. Os aldeões se aproximavam. Uma lamparina se destacou das demais e veio rápido, à velocidade de uma carreira de menino.

Belson entregou a lamparina para a mãe e abraçou o amigo que já tinha como morto.