segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O Conto

Cabisbaixo, mãos nos bolsos, anda sem rumo seguindo as calçadas. Chuta latinhas e pedregulhos, à toa, madrugada a dentro. Ficara até aquela hora, duas e meia, tentando escrever o conto encomendado pelo jornal literário. Até achou que havia conseguido um tema - gêmeos que se reencontram anos depois da separação e se vêem como num espelho, mesmo gosto de vestir, mesmo corte de cabelo, mesmos gestos. Terminou caindo nos clichês e desistiu.

Fumou, tomou uma taça de vinho enquanto folheava Machado de Assis em busca de inspiração, mesmo que fosse plágio. O editor aguardava o e-mail até as oito horas da manhã seguinte, ele não poderia falhar. Mais do que a graninha que deixaria de ganhar, feriria sua reputação ainda iniciante de bom contista, jamais seria convidado por aquele grupo editorial e isso não era pouco. Quando alguém a quem todos bajulam e com quem gostariam de trabalhar, não o aceita mais, a praga se espalha e todos os demais se recusam a arriscar com um rejeitado. Ele seria o rejeitado.

Se plagiasse Machado, poderia usar do argumento, quando descoberto e desmascarado, que havia sido inconsciente, provavelmente fora traído pela memória que lhe apresentou o velho conto revestido como algo novo. Não ficaria queimado no mercado, apenas chamuscado, mas com a vantagem de que ganharia tempo para compor algo realmente original.

A idéia demorou pouco. Não se sujeitaria a algo tão desonesto e tacanha, embora, por si, a idéia já era bem original. Isso poderia dar conto.

Tentou, mas as palavras fugiam quando se sentava em frente à tela brilhosa. A idéia estava viva, sentia-a pulsar nas circunvoluções cerebrais, mas se perdiam como em um labirinto. Não desenvolvia, andava em círculos. Pegava papel e lápis e ensaiava uma tempestade cerebral: o personagem tinha que escrever um conto; adiara até a última hora desprezando os quinze dias que lhe foram dados; na véspera de enviar os escritos para o editor, a inspiração não vinha e ele se exasperava; resolvia escrever um conto sobre isso, o que para ele era uma crônica-desabafo, para os leitores seria um conto. Até aí tudo bem, mas o que acontecia depois? Nada! Não conseguia desenvolver.

A taça de vinho virou uma garrafa, o cigarrinho do descanso virou uma carteira de inquietação, a tempestade cerebral não passou de chuvinha de verão, o início da noite virava silêncio nas avenidas. Melhor tentar outra coisa. Sabia que não era um tacanha qualquer com aspirações de escritor, sabia que tinha talento, tanto que o maior editor de literatura de que tinha conhecimento lhe encomendara um conto, não seria, portanto, tão difícil encontrar um tema.

Pegou o álbum de fotografias que levava a cada mudança, entre as muitas que tivera pela vida. Imaginava que revendo os amigos de infância, os passeios de escola, as namoradas já esquecidas e casadas e descasadas, os parentes chatos em dias de Natal, os colegas do tempo de bancário... Alguma história viria a ser contada. Talvez transformasse em ficção alguma realidade desaparecida e amarelada no tempo.

Mãe e pai, a irmã Zilinha, os primos dos quais mal lembrava um ou outro nome, Tramandaí, Neve em São Joaquim, Bonito e mergulho no rio, Brasília e o primeiro porre na rodoviária, Helena e o primeiro beijo, Sara e o último sexo, Belo Horizonte e o carro capotado, dez pontos da cabeça e costelas quebradas, Salvador e o primeiro abadá, o primeiro assalto com direito a ficar nu em Maceió, Paris e a primeira francesa... Via que não tivera uma vida dura, que conhecera mundos e gentes, que fizera o que a maioria dos mortais jamais conseguiria fazer, que tivera bons pais que lhe forneceram isso tudo e mais do que merecia. As maravilhas de uma vida bem vivida não lhe davam, porém, uma única historinha para contar.

Abriu a segunda garrafa e a última carteira de cigarro. Lembrou de João Ubaldo fazendo a auto-crítica dos tempo em que bebia: bêbado escrevia coisas maravilhosas que, sóbrio no dia seguinte, concluía serem lixo. Com o tempo se esvaindo como passageiros do metrô no rush, não se queixaria de escrevesse uma das maiores porcarias literárias da humanidade, mesmo que o álcool lhe dissesse ser uma obra-prima. Prometia-se não revisar, sequer reler, desde que nascesse uma história completa.

Bebia, escrevia, relia e apagava. Ainda não estava suficientemente bêbado para desprezar a autocrítica. Na maioria das tentativas, nem autocrítica era necessário, simplesmente não conseguia desenvolver a narrativa.

Fumava e esquecia do computador, apelava para papel e caneta. Eram tantos os rabiscos, tantas as idéias mal nascidas e abortadas depois das primeira linhas que já se amontoavam ao redor do cesto as bolinhas de papel. O lápis já fora apontado incontidas vezes, resumindo-se a um toco que nada gerava.

A última taça de vinho e o último cigarro. Recusava-se a tomar café, refrigerante, chá ou qualquer coisa minimante saudável, queria maltratar-se, autoflagelação por causa da esterilidade mental. Que viesse a má inspiração alcoólica de Ubaldo, pelo menos isso. Que viesse o espírito do pior contista morto reencarnar em si, desde que tivesse algo a psicografar.

Jogou a guimba do cigarro também no cesto entulhado de papel, recolheu o casaco mal jogado no encosto da poltrona e saiu em busca de álcool e cigarros. Nunca fizera isso, mas se desse de cara com um traficante, compraria uma droga qualquer se o vendedor prometesse que ela abriria o cérebro como dizem os junkies.

Cabisbaixo, mãos nos bolsos, anda sem rumo seguindo as calçadas esperando surgir uma porta de boteco aberta àquela hora. De repente, o estalo. Veio-lhe clara e aberta a história do escritor estéril. Via como se num filme o desenrolar da história, seu final surpreendente e engraçado. Apalpa os bolsos em busca de uma caneta, o toco do lápis – precisa anotar antes que perca -, nada! Volta-se correndo em direção a casa, correndo pelo meio da rua que tem menos obstáculos que as calçadas acidentadas. Atrás de si ouve o motor acelerado e as sirenes, salta de volta para a calçada evitando o atropelamento pelo carro dos bombeiros. Recobrado do susto, retoma a corrida, repetindo mentalmente o grande final do conto ainda em gestação.

Dobra a esquina e estanca lívido. Os bombeiros atiram água na casa em labaredas altas, vítima de um cigarro aceso na lixeira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Se gostou, leia os demais. Se não, sinto muito, fiz o que pude.