segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Ari Burro

Aristodemo não teve o amor de mãe, morta no parto. “E daí?”, respondia para fazer pouco caso de sua perda, “se mãe fosse bom Jesus não tinha deixado a dele”. Em troca recebeu a vingança do pai, Deleutério, que o culpou por toda a vida por sua viuvez. Nem de longe isso afetou o garoto ingênuo que via em tudo ensinamentos e fortaleza. Sequer percebia o ódio mal contido do pai.

Não fosse a Dozinha, sua tia mais nova, para dar-lhe leite, trocar-lhe os cueiros e todos os cuidados mínimos, porém capengas, já que Dozinha tinha pouco mais de dez anos de idade e cuidava do bebê como se de uma boneca, Aristodemo teria morrido à mingua ou sufocado em suas próprias sujeiras.

Cresceu descalço e nu até que uma alma caridosa da vizinhança lhe presenteava com um calção velho que já não servia mais para os próprios filhos.

Quando não estava carregando água para a limpeza da casa, para o banho de Deleutério, indo e voltando da venda de onde trazia alguma farinha, rapadura e cachaça, varrendo o terreiro, alimentando os porcos e galinhas, que por sorte andavam livres pelo quintal, diminuindo suas tarefas, o moleque pé-de-vento estava correndo de um lado para os outro pelas ruas do lugarejo. Metia-se nas conversas, hora enxotado, hora afagado, carregava sacolas na feira, sentava na calçada para ouvir o velho cego que tocava pífano na porta da igreja em troca de alguma moeda. Ajudava as lavadeiras com suas trouxas rumo ao rio, pegava na vassoura junto com o coroinha depois da missa para deixar o adro da matriz sem pó, ajudava as velhinhas a atravessarem as ruas evitando as bicicletas e carroças. Não parava.

Um dia perguntou ao pai por que recebera tal nome, ao que, sem medir sua maldade, Deleutério dissera que era o nome do burro que ganhara do avô. Sem entender a ofensa, deixou de lado até que o Calafeu, filho do dono da venda, perguntou-lhe a mesma coisa. Inocentemente contou a origem do seu batismo – batismo por assim dizer, nunca fora batizado. Virou motivo de gozação da molecada, sem dar-se conta da crueldade por trás.

Dona Dorazilda, a professora, penalizada, tentou consolá-lo, mesmo ele nunca ter-se sentido ofendido, explicando que o burro era um animal forte, trabalhador, o melhor amigo do sertanejo. O efeito foi o contrário do esperado pela velha. A partir de então o próprio Aristodemo se apresentava como o menino-burro, orgulhoso, era forte, trabalhador e o melhor amigo das pessoas do lugar. Virou o Ari Burro e a chacota perdeu a força, virou nome.

Ari Burro crescia com um sorriso nos lábios, pernas rápidas, raciocínio pronto e sabendo fazer de tudo.

Um dia chegaram as freiras. Montaram uma escola. Saíam pela periferia daquela periferia catando as crianças mais pobres e as levavam para o semi-internato. Em troca da disciplina rígida, dos ensinamentos puxados de álgebra e gramática, acrescentavam-se os religiosos, de arte, canto e a inseparável palmatória. Davam roupas limpas, cadernos, lápis e três refeições por dia. A última parte interessou a Ari Burro.

Se fosse necessário aprender a ler, a somar e estudar a Bíblia naquelas intermináveis horas em troca de uma comidinha quentinha e feita por mulheres tão limpinhas, estava disposto ao sacrifício.

Não foi fácil domar o xucro Aristodemo. Foram palmatórias e mais palmatórias, vara de marmelo na bunda, puxões de orelha, ficar em pé por duas horas, imóvel, sob o sol quente, castigo de joelho no milho, mas aos poucos as irmãs o moldavam. Ele agüentava pela sopa, o pão, o café com leite, o arroz com galinha à cabidela nos dias festivos e os doces de batata que, volta e meia, aparecia em suas mesas.

Já não se via mais Ari Burro correndo pelas ruas, ajudando a quem precisasse, carregando embrulhos ou trouxas de roupas. As beatas varriam o terreiro da igreja, as velhinhas atravessavam as ruas sozinhas. Nem Deleutério tinha mais chance de espinafrar o filho que, quando em casa, se refugiava no fundo do quintal sob a jaqueira com seus livros e cadernos.

Em sua primeira semana no colégio das freiras, lhe perguntaram o que gostaria de ser quando crescesse.

- Deus.
- Ninguém pode ser Deus, Ele é Único!, assustou-se irmã Anunciata.
- Mas eu quero ser Deus.
- Não blasfeme, garoto, ou vai para o castigo.
- Irmã, a senhora não perguntou o que eu queria ser? Eu quero ser Deus.
- Você não quer ser padre?
- Eu até queria, mas agora eu quero ser Deus.
- E posso saber por que o senhor quer ser Deus?
- Porque ele é rico.
- Quem disse que Deus é rico?
- Eu sei.
- E como o senhor sabe?
- Todo dia o padre não passa um saquinho na missa recolhendo dinheiro do povo e diz que é pra Deus? Se fosse pro padre eu queria ser padre, mas já que é pra Deus, eu quero ser Deus.

Surra de vara de marmelo! Castigo! Um dia sem comer.

Desistiu de ser Deus. Padre já estava bom.

Já no seminário, um dia recostou-se na janela observando a vida na cidadezinha e viu um garotinho pretinho como ele, descalço, vestindo um calçãozinho rasgado e sujo, atravessando a praça correndo em direção à venda do seu Sodó. Pouco depois o garoto saía correndo de novo com um pacote de velas na mão, um sorriso na cara e a velocidade de um alazão.

Algo despertou em Aristodemo. Empertigou-se, clareou o cenho antes carregado, como se iluminado por divina luz. O que estava fazendo consigo?

- Ora, ora, ora. Não é que estou me tornando um burro mesmo? Eu não era Ari Burro à toa...

Arrancou a batina, saiu do prédio e voltou à sua vida livre de antes com seu pífano, sua sandália, a pouca roupa e ajudando de verdade as pessoas a quem sempre teve tanto bem e não percebia.

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