Era meio da manhã de domingo quando apareceu na ponta da rua principal de Nossa Senhora da Conceição o tílburi de capota vermelha, aro das rodas dourados, um luxo desconhecido na cidade e encoberto pelo pó da estrada.
Na boléia um homem muito alto, barbas brancas bem aparadas e pontudas sob o queixo, cabelos também brancos cobertos por impecável chapéu de copa alta. Pele também alva, embora avermelhada pelo sol seco do Planalto Central. Seus trajes, linho branco, destoavam do alaranjado da poeira. Ao lado do homem uma enorme gaiola de metal dourado como os aros, base circular, quase um metro de altura. Em seu interior três periquitos australianos, um azul, um verde e o terceiro, arroxeado,
Aquele conjunto ímpar chamava a atenção dos moradores modorrentos, da criançada serelepe e dos que saíam da missa sob o repique dos sinos. Em frente à igreja o cavalo preto parou sob o comando do homem. Este, tirando o chapéu, dirigiu a palavra a dona Hadilma, que varria os degraus.
- Simpática senhora, há uma estalagem nessa simpática cidade?
- Uma o quê, moço?
- Uma estalagem, pousada, hotel...
- An, sim, tem a pensão de dona Leócia. É só seguir reto e quebrar a segunda à dereita.
Enquanto a dupla conversava, a viatura foi cercada pela meninada curiosa com os bichinhos coloridos.
- Moço, arriscou um deles, quem pintou as curicas desse jeito?
- Ora, minha querida criança, esses nobres animais não são reles curicas e, sim, sagrados Raquinas regius indianos, pássaros raros e mágicos vindos do outro lado do mundo.
- Raquina réjus? Nunca ouvi falar.
- São seres raríssimos, os últimos três existentes no universo.
Dito aquilo e sabendo que a notícia espalhar-se-ia pelo lugarejo com a velocidade de notícia de morte, seguiu caminho rumo à pensão.
A viúva Leócia, com seu jeito pouco educado e nada higiênico, impressionada com a presença de insólita figura, cuidou de arrumar-lhe o melhor quarto, justo o que dava janelas para a feira livre. Coisa melhor o visitante não poderia querer.
Por duas moedas, o moleque Anilson levou sua única mala para o quarto, enquanto o homem encarregava-se da gaiola. Demorou-se no aposento apenas tempo suficiente para vestir outro terno de linho branco, lustrar os sapatos e acertar a barba com afiada navalha.
Com a gaiola na mão foi à feira. Sentou-se em um banco sob a marquise da bodega, pediu um refresco de gabiroba e esperou o assédio que sabia que viria. A algazarra das aves chamava o público aos poucos. Tímidos, mas curiosos, os moradores se aproximavam, um esperando que outro perguntasse do que se tratavam aqueles belos animais. Zé Codó, o mais conversador e sem senso de respeito à privacidade alheia, logo se fez presente à turba que já era considerável.
- Moço, quer vender os ajurucurau?
- Não, meu nobre cidadão. Primeiro, que não são ajurucuraus, mas Raquina regius sagrados. Esses nobres animais são de espécie em extinção, os últimos exemplares daqueles que já foram numerosos na longínqua Índia.
Não poderia esperar muito pelas perguntas. Iria direto à história tantas vezes repetidas e que era aumentada a cada parada, aumentando a admiração e cobiça dos que o ouviam. Se ninguém o interrogasse logo, teria que emendar a conversa, mas ali estava Zé Codó, maranhense conversador.
- São sagrados por quê? Por que eles tão acabando?
- Meu caro amigo, lhe contarei sua história. Na antiga Índia, um pobre senhor, já quase morto de fome, encontrou uma colônia desses nobres pássaros. Vendo ali uma oportunidade de ganhar algum trocado na venda deles, conseguiu aprisionar um bom número. Com bambu, construiu uma gaiola onde coubessem todos. Como já anoitecia, deixou os bichinhos descansando e foi dormir, sonhando com a ração que teria no dia seguinte após a venda.
Os olhos do público não despregavam do orador, alguns já puxavam caixotes para sentar, olhos não piscavam. Estavam entregues.
- Ao amanhecer, na boca da manhã, o pobre Raquina, esse era o nome do faminto indiano, espantou-se ao ver todos os pássaros parados em seus poleiros, todos virados na mesma direção. Esquisita situação, algo que jamais vira em seus muitos anos de vida. Virou o rosto na direção para que apontavam os bicos dos pássaros e viu a montanha onde diziam haver um tesouro de rubis, ouro e diamantes escondido por antigo marajá quando em fuga de seus inimigos.
Tesouro! Essa palavra sempre mexia com o imaginário dos simples.
Enquanto contava sua história, ao largo passava uma carroça conduzida por um negro alto, mal vestido, homem que não chamava a atenção, ainda mais quando algo muito interessante prendia a todos. A carroça era completamente coberta por lona escura.
- Sentindo um comichão na alma, o pobre Raquina resolveu seguir aquela direção. Por um momento esquecera do mercado onde venderia seus bichinhos multicores, estava intrigado com aquilo. Num farnel colocou as últimas frutas de que dispunha e seguiu rumo às montanhas. Tomou cuidado de andar em linha reta para não desviar-se da direção indicada pelos pássaros. Foi um dia inteiro de caminhada. Ao fim da tarde, quedou-se estafado e dormiu sob a copa de uma árvore.
O público agora já era incontável. Percebia entre os espectadores, pelos trajes, homens bem apessoados para o padrão local. Eram os ricos. A coisa estava cada vez melhor.
- Ao acordar, novamente viu os pássaros todos de cabeça baixa, bicos voltados para a mesma direção. Não se fez demorar, passou a caminhas no rumo indicado, passos mais largos que a subida permitia. Andou por algumas poucas horas, gaiola na mão e nada no embornal quando percebeu novo rebuliço e gritaria na gaiola. Os pássaros gritavam, todos com seus bicos voltados para uma pedra que cobria a entrada da gruta. Não havia dúvida, era uma indicação. Escondeu a gaiola entre arbustos e colocou-se dentro da gruta por uma passagem estreita atrás da pedra. Exatamente o que estão pensando, queridos ouvintes, ali estava uma enorme arca cheia até a borda de rubis, esmeralda e linda peças de ouro.
O homem da carroça coberta já sumia no fim da rua, o público deliciava-se.
- De volta à vila, Raquina construiu um castelo, comprou terras, plantou arroz e legumes e matou a fome de seu povo. Seus pássaros, porém, jamais apontaram a mesma direção ao amanhecer. Raquina imaginou que sua missão estava cumprida, não mais tinham algo a fazer por ele, por isso os vendeu, em trios, para aqueles que sonhavam com seus próprios tesouros.
A poeira deixada pela carroça do negro já se assentava.
- Por quinhentos anos, muitas fortunas foram feitas ao redor do mundo, mas, aos poucos, os pássaros foram morrendo por maus tratos ou de velhice, hoje restam apenas esses três que comprei em Marabá e há um mês eles vêm apontando uma direção para mim. Pelo rebuliço que fizeram hoje cedo, imagino que esteja perto de minha riqueza e os deverei passar adiante logo e que seja breve porque não tenho mais recursos para alimentá-los ou a mim mesmo. Ficarei rico em poucos dias e esses nobres animais de Shiva deverão trocar de mãos.
Todos boquiabertos, queriam mais e mais, porém, o visitante alegando cansaço, disse que deveria descansar para seguir o rumo da fortuna na manhã seguinte.
À noite, enquanto tomava sua sopa rala na pensão de Leócia, recebeu a visita do fazendeiro mais rico do lugar, seu Aldamiro, descendente direto dos primeiros bandeirantes que passaram por ali. O homem queria pagar qualquer preço que o visitante pedisse pelos seus pequenos pássaros. Suas economias começavam a mostrar uma diminuição, as filhas já estavam na idade de irem estudar em Goiás, as fazendas precisavam de melhorias... Os graciosos e barulhentos Raquinas regius seriam sua salvação.
O homem de linho branco regateou, colocou dificuldades, alegou ainda não poder vendê-los, ainda não achara seu tesouro, mas o homem insistia, até não ter mais o que dar para o visitante que não aceitava terras, mercadorias, apenas dinheiro, afinal essa era a tradição deixada pelo velho Raquina indiano.
Por fim, cedeu. De manhã consultaria os pássaros e, dependendo da resposta, fariam negócio. Esfregando as mãos, ansioso pelo negócio a ser feito, Aldamiro saiu quase correndo, precisava juntar todo o dinheiro que tinha e vender algumas vacas naquela noite.
Mal saiu Aldamiro, o pensionista recebeu a visita do prefeito, capitão Alcobaz. As propostas pelo pássaro aumentavam até não mais poder e cobriam as de Aldamiro. Sai Alcobaz, chega Hernildo e o leilão continua. O converseiro baixinho, quase um sussurro, se repetiu até quase meia noite. Percebendo que ninguém cobriria a proposta de Godofredo, o homem de branco manda Anilson atrás do fazendeiro com urgência.
Não demorou, lá estava o comprador com duas sacolas de couro transbordando de cédulas e moedas. Acordara o banqueiro e o fizera quase esvaziar o cofre do banco.
Feita a venda, o visitante lhe deu orientações de como alimentar as aves, como deveria evitar o excesso de sol e barulho, a que horas deveria fazer a consulta aos bichinhos e todos os demais cuidados a serem tomados.
Acompanhou Godofredo até a porta e ali ficou até vê-lo sumir na segunda esquina.
Numa urgência de médico, mandou que Leócia lhe fechasse a conta, pagou, levou sua arca para o tílburi que atrelou ao cavalo branco com a maestria e rapidez de poucos e pôs-se quase a galope para fora da cidade, pelo norte já que todos imaginavam que ele seguia para o sul por conta de seu caminho de chegada. Não dormiria e nem descansaria até estar muito longe, onde seu parceiro o encontraria numa carroça toda coberta e carregada com várias gaiolas com trios de periquitos australianos.
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
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