Era apenas mais um dia de trabalho para Barteno, embora poucos na cidade fossem dar expediente naquele dia. No final da tarde deu um beijo na mulher, fez um carinho dos três pequenos e recomendou que esses cuidassem da mãe, pegou sua bicicleta e pedalou até a pequena fábrica de cimento onde o auto-forno recém instalado não podia ser desligado. O equipamento, caríssimo, tinha que manter-se ativo vinte e quatro horas por dia. Em caso de desligamento haveria perda de componentes do equipamento, causando grande prejuízo para a fábrica e a conseqüente demissão de vários trabalhadores que atuavam em três turnos. Com uma família já grande e outro rebento por vir, não poderia sequer imaginar a possibilidade de ficar desempregado.
No caminho entre a casa e o trabalho, a noite surgindo, observa as casas mais abastadas enfeitadas de lâmpadas, músicas e cores. Ouvia a animação por detrás dos muros, as harpas soando pelas caixas de som. As ruas com seus postes e árvores enfeitados, muita luz, muito brilho, as pessoas com rostos amáveis que não mostravam no restante do ano. Algumas lojas abarrotadas de retardatários que haviam deixado para a última hora a compra de seus presentes, muitos pais de família caminhando apressados, mas felizes, com suas sacolas de mimos ou a última guloseima da ceia.
Ouvindo todo aquele burburinho que tomava a cidade que atravessa, o peito de Barteno apertava. O filho mais velho pedira uma bicicleta, a filha do meio esperava a bonequinha do anúncio da revista e o caçula sonhava com aquele caminhãozinho vermelho de bombeiros que vira na vitrine quando voltava da escola. As lágrimas vinham aos olhos do pai que desejava dar tudo aquilo, mas como? O que sobrava do parco salário era aplicado em telhas, tijolos e canos para poder ampliar o casebre nas próximas férias. A vontade era muita de presentear toda a família, além de dar o que as crianças pediam, queria também que Suleima, a esposa, pudesse vestir-se com aquele vestido de seda que ela mesma desenhara e redesenhara dezenas de vezes, sonhando em tê-lo pelo menos por uma noite. Barteno sabia que veria os sorrisos mais lindos do mundo se pudesse realizar esses desejos, por isso chorava em silêncio enquanto pedalava.
Eram tantos os rostos sorridentes, as risadas que ouvia, as sacolas e pacotes que passavam por seus olhos que os sentimentos misturavam-se. Se alegrava com a alegria alheia, mas sentia uma pontinha de inveja, frustração de um pai sem recursos, vergonha por não poder ver aqueles mesmos sorrisos nos rostos da própria família. Ao passar diante da igreja, viu o padre e os voluntários enchendo o baú de um caminhão com milhares de brinquedos arrecadados que, provavelmente seriam distribuídos entre as crianças do orfanato ou aos moradores de alguma favela. E ficou mais triste um pouquinho. Talvez bastasse ele freqüentar as missas para que suas crianças fossem lembradas por aqueles voluntários, mas por não ver em Deus uma figura tão provedora como diziam os fiéis, se afastara Dele. Por que Deus permitia que alguns tivessem tanto e outros o mínimo ou nem isso? Deixara de acreditar na justiça divina e nas crenças da maioria. Deus nada lhe deu nem lhe daria, ele precisava suar e aspirar aquela sílica, encarar pó, calor do forno, suar em bicas, desgastar os músculos oito horas madrugada a dentro, seis dias por semana para dar o mínimo de alimentação e conforto para os seus, Deus nada tinha a ver com aquilo.
Apeou da bicicleta ao chegar à fábrica, misturou as lágrimas ao suor que escorria na face, identificou-se na guarita e seguiu para o trabalho. Durante seu turno que iria das oito da noite às quatro da manhã, procuraria concentrar-se apenas no trabalho, sua ocupação e diversão. Se por um lado era um trabalho desgastante, com uma hora para descanso e um lanche de pão com manteiga e com copo de leite dados pelos patrões, por outro lado era o que permitia que o mesmo pão e o mesmo leite não faltassem em casa. Entregou-se à labuta com afinco, atenção total ao serviço para não se permitir pensar em mais nada.
Já madrugada alta, a sirene toca. Barteno e os vinte iguais a tomam um meio banho das torneiras do pátio, apenas de calça, retiram parte do pó fino e acinzentado que cobrem todo o corpo, quase fazendo uma argamassa nos cabelos, cospem uma papa também acinzentada imaginando quanto daquela poeira fora parar em seus pulmões. Pega a bicicleta, cansado, desejando encontrar o sorriso de Suleima que sempre o esperava no portão com um copo de café. Pobre Suleima, dormia depois das crianças, acordava antes dele chegar e trabalhava o dia inteiro arrumando as crianças para a escola, fazendo o almoço, limpando a casa, mantendo suas roupas lavadas e passadas, tomando a lição de casa dos pequenos, ... Não tinha como não amar aquela mulher, tão forte, tão bonita e a amiga que qualquer homem desejaria tê-la por perto. Seu maior tesouro e estímulo para agüentar a vida dura que prometia ser assim para sempre.
As ruas ainda mostravam suas luzes, a maioria das casas já se encontrava apagada, mas em uma ou outra ainda se ouviam o vozerio dos bêbados, os filhos dos pais alcoolizados brincavam com seus presentes novos, alguns já destruídos, uma ou outra cantoria, a ambulância suas luzes e sirene apressada, provavelmente para socorrer algum bêbado que dirigia ou algum bêbado em coma alcoólica. Por todo seu caminho as ruas cheias de papéis coloridos que antes cobriam presentes. As lágrimas voltavam depois de oito horas de descanso. Sabia que ao chegar em casa receberia o beijo pontual da mulher, tomaria seu café, se banharia de verdade e cairia na cama. Ao acordar veria o rostinho triste dos filhos que choramingavam a não vinda de Papai Noel, de novo. Isso lhe rasgava o peito como uma navalha cega.
Ao dobrar a esquina, absorto em suas tristezas, foi despertado pela buzina do caminhão, o mesmo que vira horas antes na porta da igreja. Quase batia de frente. Assustado, desviou para a direita, parou junto ao meio-fio, e ficou olhando aquele Papai Noel de aço que fizera a alegria de alguns pequenos cristãos. Se ele pelo menos fosse à igreja... Espantou os pensamentos e as lágrimas e retomou o caminho de casa, já pertinho, logo ali no próximo quarteirão.
Lá vinha em sua direção um molequinho em sua bicicleta nova, bambaleando como bambaleiam as crianças que terminaram de aprender a pedalar. Ele pouco viu a bicicleta do garoto, o que lhe chamava a atenção e deu-lhe um calor gostoso no peito, foi aquele sorriso enorme onde faltavam dois dentinhos de leite recém caídos.
- Pai! Pai! O Papai Noel trouxe minha bicicletinha! O Papai Noel lembrou de mim!
Barteno, as lágrimas agora incontroláveis, virou a cabeça e ainda viu a traseira do caminhão-baú desaparecer na esquina lá em frente. O sol ensaiava suas cores no horizonte, Suleima amarelada pelo sol, escorada no caixilho da porta, sorriso tatuado nos lábios, não trouxera seu café pontual, olhava a filha feliz com a boneca que fala e o pequenino salvando vidas com sua escada Magirus.
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
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