segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Despedida

Dorinha, faz essa cara de pena, não. Não careço de pena. Vivi o que pude viver e não foi mais pior nem melhor do que a vida dos que vivem bem desde a nascença. Cada um tem sua cruz, amiga, ou muitas cruzes, e eu tive as minhas. A vida me escolheu, depois, escolhi a vida.

Se a vida levou minha mãe quando nasci e meu pai pelas estradas antes d’eu nascer e, mesmo me deixando sozinha, sem leite e sem banho, ela não quis me levar, estava dizendo que, já que eu fiquei, vivesse tudo o que tinha que viver. E vivi, Dorinha.

Não levo nada e nem deixo qualquer coisa pra ninguém, mal tive pra mim, pra meu sustento roto, como deixar algo para os outros? Bem que eu gostaria de ter uma casa, jóias caras, uma terrinha, um bangalô na praia... Nada disso pro meu luxo, mas pra deixar algo bom pra você, amiga, que me deu comida, teto e carinho nesses últimos tempos, tempo mais ruim que todos os tempos ruins que já vivi. Deixar alguma coisa de boa para Philóphio, coitado do Philóphio, vinte anos de cadeia pra me salvar do capiroto do Alesso. Se não fosse Philóphio chegar com a peixeira, Alesso tinha me matado, tudo por causa dos dez reais que ele não quis pagar pela trepada. Nunca mais fode ninguém! Mas fodeu com a vida do pobre Philóphio por vinte anos. Pobre Philóphio...

Queria deixar algo bom pra Zineide também. A melhor amiga que eu poderia ter naqueles tempos. Não sei o que é ter mãe, mas sei o que é ser mãe, mesmo sem saber quem era o pai do meu filho que a morte não deixou nascer. Eu era bonita, Dorinha, os homens babavam para as minhas coxas, pra minha bunda, pros meus peitos grandes e duros. Eu não podia perder a chance de ganhar dinheiro com a única coisa que eu tinha. Não fazia gosto ruim, foram muitos homens, de toda cor, cheiro, gosto. Se pagasse, eu ia, e fui muito. Ganhei uma fortuna naqueles tempos. Mas Deus não gosta de mim, Dorinha. Bem que ele poderia me dizer por causa de quê me tratou como bastarda.

Justo quando eu estava podendo cuidar de mim, dinheiro no banco, roupas novas e bonitas, casa pra morar, de um lado ganhei um filho, de outro, a doença. Daria tudo se morresse eu e ficasse meu filhinho que nem nasceu. E a Zineide foi quem me deixou viva.

Eu tinha jurado pra ela: Zineide, não quero mais ser rameira. Se Deus me curar e salvar meu filho, saio da vida, arrumo um emprego e vou viver pra ele. Deus levou meu bebê e quem me salvou foram os remédios que a Zineide comprava com o dinheiro que ela tinha pra comer, depois de eu ter gastado tudo com os médicos e laboratórios. Deus não fez a parte dele, eu não tinha que fazer a minha.

Agora vem essa outra, sem cura e sem jeito. Pra quê tanto remédio se não se pode matar a bicha? Vou tomar nenhum! Não vou mais dar dinheiro pra médico, nem pra farmacêutico, nem pra laboratório. Nem o meu, nem o seu! E não vou mais acordar de madrugada para entrar na fila sem fim da previdência. Se não há cura, pra quê sacrifício?

Tenha dó não, Dorinha. Já sou uma velha nesses meus trinta e dois anos. Não vê as rugas na cara? As da alma são mais fundas. Eu morri em vida, amiga. Se há pecado, tenho crédito, muito crédito. Sofri mais do que pequei. Eu mereço o céu.

Mas não quero ir pra cantar hosanas e passear de mãos dadas com os anjinhos – entre eles deve estar o meu que não nasceu -, quero ir para encarar Deus nos olhos e exigir que me responda por que me odiou tanto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Se gostou, leia os demais. Se não, sinto muito, fiz o que pude.