segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Frizo

Como só quem tem anjo-da-guarda garantido são as crianças, os velhos e os bêbados, foi dado a Frizo um daqueles parrudos, pau pra toda obra. A cada dia o tal anjo tinha que fazer trabalho dobrado para salvar a pele do seu protegido.

Frizo – na verdade, Etelvino, no batismo – se metia em qualquer enrascada que por ventura aparecesse pela frente. Dizia que ele não as provocava, elas que o chamavam. Já passou a mão em mulher de samango, já parou touro bravo na mão depois de tomar uma garrafa de jurema, já espalhou pela cidade que o promotor tirara a mulher com quem se casara do brega São João do Sabugi, já passou cinco minutos embaixo d’água para ganhar a aposta de uma garrafa de pinga... De todas as suas aprontações se salvou sem arranhão ou olho roxo. Não dava folga para o pobre anjo.

O apelido ganhara do dono da bodega, o Herbínio. O merceeiro, dono do primeiro freezer de Ipueiras, dizia que o amigo tinha a cabeça fria como um “frizo”, suficiente para o codinome se espalhar.

Como todo peso da vida tem seu contra-peso, Frizo tinha sua Geriana. Mulher de uma delicadeza e elegância únicas naquela caatinga. De manhã lavava roupas das famílias de mais posse, à tarde passava e entregava, à noite se encarregava das costuras. Não encontrava mais lugar na casa para esconder a féria de tanta labuta. Fosse onde fosse, o marido sempre encontrava e dava um desfalque para as farras. Diziam as boas e más línguas que Geriana tinha lugar garantido no céu por suportar homem tão folgado. O cabra sumia por dias, chegava bêbado, maltrapilho e cheirando a alfazema das quengas. Ela, nem um pio. Preparava o banho, dava de comer, arrumava a cama e exigia silêncio dos cinco filhos para que não perturbassem o sono de Frizo. Ele, um folgazão; ela, uma conformada.

Nosso personagem, porém, não era um mau sujeito. Fazia camaradagem fácil e terminava amigo dos desafetos, bastava uma dose de uca. Ajudava os vendilhões a arrumarem suas mercadorias, fazia frete nas costas por um níquel ou uma cachacinha ou um pedaço de jabá. Animava o ambiente em que se encontrava. Veio ao mundo para se divertir e divertir quem o cercasse. Era apenas um folgazão boa praça.

Naquele inverno choveu de matar lambari afogado. A cidade festejava a bonança que as águas de São José prometiam. Nunca se vendeu tanta aguardente, ao pé do alambique Frizo fazia ponto para ganhar suas doses por conta da comemoração.

Ficou bêbado como há muito não ficava. A festança acabou, os demais ébrios iam para suas casas ou para o bordel amparados por suas mulheres fixas ou ocasionais. Frizo ficou sozinho com o último garrafão e se aboletou no banco do coreto da pracinha.

Foi tanta água que o riacho seco virou rio, o açude chorou, casas de barro batido viraram lama. A festa acabou em choradeira. Nem a torre da igreja resistiu à enchente e veio a baixo. Criações sumiram, móveis desciam o boqueirão junto com porcos e bodes. Já se preparava uma novena pedindo arrego ao santo durante a madrugada.

A mães punham os filhos sob os braços, como galinhas chocas, enquanto rezavam em voz tão alta que uma vizinha fazia coro a outra sem saírem de suas casas. As ladainhas se confundiam com o chuá das duas corredeiras, a que caía do céu e a que rolava pelas ruas.

O coreto onde Frizo roncava teve suas pernas arrastadas e o tablado de madeira virou jangada com sua cobertura milagrosamente intacta. No seu sono, Frizo sonhava que atravessava o Atlântico comandando um navio que ia para a Arábia. Sonho gostoso, daqueles que fazem a gente sentir a sensação das ondas. A chuva caía, a correnteza das ruas virava rio e seguiam o rumo natural dos rios, o mar. Navegando em seu sono e no quiosque-jangada, ainda abraçado ao garrafão, Frizo navegava para as Arábias.

Acordou importunado pelo sol ardendo a cara. Sentou no banco esfregando os olhos. Ao abri-los deu de cara com uma multidão que o cercava. Gente de toda espécie, velhos desdentados, velhas beatas e fuxiqueiras, crianças espantadas com o espanto dos velhos, a polícia... Oxe! A polícia? O que aprontara dessa vez?

- Eta, jurema braba!

Olhando aquele amontoados de caras desconhecidas, quebrou o burburinho com a voz ainda bêbada e um bafo de desmaiar onça:

- De onde veio esse povo todo? Vai ter festa em Ipueiras?

O samango:

- Ipueiras? Tu tá em Acaraú, cabra! E o seu Cadorges do hotel tá querendo comprar sua jangada de cobertura.

- Ave Maria!, Frizo se espantava olhando o garrafão pela metade. Acho que vou tomar o resto pra ver se chego nas Arábia.

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