segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Delirium Pen Club

Era hora da reunião diária do Delirium Pen Club. Todos os artistas da cidade se dirigiam à sede com seus barretes dourados, coletes com arabescos bordados em fios d’ouro e os brilhosos sapatos marrom.

Os administradores da cidade haviam percebido a dispersão dos escritores, pintores, poetas, ficcionistas, enfim, dos artista e intelectuais. Com sua popularidade em baixa, viram ali uma boa oportunidade de trazer cabeças pensantes para o seu lado, o que fazia com que boa parte da população, seguindo seus ídolos, viesse a reboque, melhorando a popularidade do prefeito e seus correligionários.

O secretário de cultura foi rápido em executar o plano silencioso. Desapropriou terreno, construiu prédio suntuoso, nomeou um fotógrafo, um pintor e um contista como administradores, fez uma enorme festa durante a qual convidou a inteligentzia local para compor o clube como colaboradores. Na primeira reunião ficou determinado o estatuto e as normas de convivência. Leis simples, de fácil aplicação e fiscalização, tinham como principal artigo a total liberdade de manifestação.

O sucesso veio rápido, a notícia espalhava-se pela cidade e pela zona rural. A visitação do público foi franqueada, podendo este assistir às reuniões, ter acesso às obras produzidas e até associar-se, bastava comprovar ser eleitor.

Estava formada uma salada das mais diversas ideologias, todas as cores, idades (desde que maior de dezoito anos, afinal eram os votos que interessavam ao prefeito, cultura era algo secundário. O alcaide já confessara publicamente jamais ter lido um livro). Isso não significava, porém, que só havia gente inteligente, talentosa e crítica.

Volta e meia surgia um mais exaltado disposto a bater e apanhar pelo prefeito, como se este fosse o responsável pela criação das artes, ao invés de apenas um canal para sua reunião e disseminação. Surgiam os mais sutis que manipulavam a opinião dos mais crédulos ou mais ingênuos. Entre esses se destacavam os maria-vai-com-as-outras, caracterizados pelo ego gigantesco, comum aos artistas, mas senso crítico e capacidade de análise quase nulos.

Com o afluxo de tanta gente às reuniões, foi criado o uniforme para que se identificasse mais facilmente quem era associado e quem era apenas assistente: barrete dourado, colete com arabescos em fios de ouro e sapatos marrom. Mesmo os mais rebeldes, e entre artistas eles são muitos, se sujeitavam a essas convenções, não havia razão para não seguir determinação tão simples.

Naquela noite, porém, Catalina veio de sapatos de saltos altos pretos. Estava instaurado o caos. Como aceitar aquela cor entre os pares que calçavam marrom? Justo Catalina que sempre fora uma boa moça, simpática com todos e por todos admirada por seu caráter e talento inquestionáveis?

Um dos três administradores do Delirium Pen Club, o contista, pediu, ou melhor, deu-se a palavra atropelando toda a pauta pré-concebida. Nada iria adiante antes de se discutir os sapatos pretos de Catalina. Mais justo seria expulsá-la, independentemente de seu talento ou seu caráter. Os sapatos comprados baratinhos na liquidação da esquina, de repente se tornaram mais importantes que seus poemas.

A cisão não demorou. Três grupos formaram-se: os que apoiavam o administrador, os que apoiavam Catalina e os que não se manifestavam publicamente.

O grupo dos partidários do contista era formado pelos que concordavam com seus argumentos por afinidade de pensamento, e era minoria; e os que se recusavam a contrariar qualquer resolução dos detentores do poder, por menor que fosse o poder de um administrador de clube cultural de cidadezinha perdida no meio do nada.

Os que defendiam o direito de Catalina eram claros e assumiam publicamente essa defesa. Era o menor grupo. Um pequeno exército de Brancaleone entre aqueles monstros das letras, das telas, das lentes e da política sub-reptícia. Pouco ligavam se os sapatos da moça eram marrons ou multicores, apenas acreditavam na liberdade de cada um vestir-se ou calçar-se como bem desejasse. Isso não faz do indivíduo melhor ou pior, no máximo, diferente.

O terceiro grupo, numeroso, era heterogêneo. De boca calada em público, pelos corredores, em pequenas rodas, punham-se a favor desse ou daquele contendor. Ao pé do ouvido, segurando as palavras pelas penas do rabo para que não voassem para ouvidos mais distantes, sussurravam o apoio ao administrador ou a Catalina. Mandavam bilhetinhos de defesa veemente a um ou outra, sempre com um post scripitum: destrua depois de ler.

Os componentes desse grupo, embora maior que os outros dois juntos, escondiam sua preferência. Na hora do voto decidiriam o destino de Catalina no clube, mas exigiam o voto secreto. Eram incógnita para quem não estivesse em suas pequenas rodas. Fosse qual fosse o resultado da votação, colocar-se-iam, silenciosamente, em apoio ao vencedor e fariam afagos no revoltado, solidarizando-se com este pela covardia de que fora vítima. Gente perigosa, essa.

Foram dias de discussão. Defesas e acusações de lado a lado. Catalina na berlinda e os discursos inflamados alternando-se no púlpito. O terceiro grupo a tudo ouvia e fazia cara de que pouco ligava. Por conta da cor dos sapatos de Catalina, a produção artística da cidade estava parada.

Para defender ou acusar a associada os discursos partiam para a honra dos debatedores, até nomes de mães foram proferidos com pouco respeito.

Já havia uma semana de debates quando surgiram as primeiras dissidências. Artistas que só queriam saber de arte passaram a se afastar, um a um, aos pouquinhos. Catalina foi a primeira a perceber o esvaziamento gradual do Pen Club. Para evitar o fim da associação, pediu desligamento. De nada adiantou. A cor de seus sapatos já não importava, a briga persistiu por amor à briga e não ao uniforme maculado. A discussão já era sobre o lanche mal servido nas reuniões, sobre o adultério do porteiro, sobre a cor das paredes do salão de festas, enfim, qualquer coisa, menos os sapatos da poetisa já esquecida.

Com tantas discórdias, dissidências e desistências, o clube teve suas portas cerradas, restando apenas um contista solitário e enlouquecido proferindo um interminável e raivoso discurso no púlpito empoeirado.

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