segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Histórias Quebradas

Cedinho, antes do sol nascer, era possível ver aquelas quatro redes estendidas sob a marquise do armazém, ali, na esquina do mercado de frutas.

Chegando perto, seriam vistos os quatro velhinhos, cada qual em sua rede, dormindo tranqüilos, dois com seus óculos sobre os narizes, talvez vendo melhor seus sonhos. Os vigias das lojas velavam seu sono.

Aos primeiros barulhos das barracas sendo arrumadas, levantavam-se, cumprimentavam-se, dobravam as redes e três deles sumiam, ninguém sabia onde passavam o restante do dia. O quarto, Aristófanes, seria visto ali mesmo no armazém, sentado atrás de uma banquinha onde se lia “Jogo do Bicho”. Recolhendo as apostas, complementava a parca aposentadoria. Não sorria, não conversava. Olhos tristes e cabelos brancos, apenas sentava ali esperando a clientela. Queixo escorado nas mãos, observava o ir e vir da rua do mercado.

Mal anoitecia e as lojas fechavam, apareciam os demais. O baixinho com sua careca branca e óculos de aros dourados remendados com epóxi, Laurentino era o primeiro. Cumprimentava Aristófanes, trocavam algumas informações sobre as novidades do dia, sempre muito poucas, e dividiam o café que Laurentino trazia numa pequena garrafa térmica. Aristófanes já colocara a um canto as redes que se encarregava de guardar nos fundos do armazém, com o consentimento do dono.

Por volta das sete aparecia o espigado Wilfredo, trazendo num saquinho de papel pardo as coxinhas e pastéis que sobraram na lanchonete da esquina e que dona Laudicéia lhe presenteava. Seriam a ceia dos quatro. Não comiam enquanto Adenilton não chegasse. Vestiam-se com a sobriedade com que suas camisas puídas no colarinho permitia. As calças de tergal como há muito não se via mais nas ruas, sapatos velhos, com exceção de Adenilton que calçava uma sandália do tipo franciscana, infinitas vezes remendada com linha de pesca. Tirando Wilfredo, todos usavam chapéus de feltro.

Uma noite um dos vigias da rua aproximou-se do grupo, curioso sobre suas vidas. Sentou-se na calçada e pôs-se a ouvir.

Aristófanes falava que recebera notícias da filha por um caminhoneiro que passara. Adelice e as crianças estavam bem. O marido dela havia sido promovido a gerente do banco e moravam numa casa grande com jardins floridos. Tinham um carro do ano e viajavam para a praia nas férias.

Laurentino contava que a esposa continuava sem reconhecê-lo, mas estava sendo bem tratada no asilo dos velhinhos. Tirando o Alzeheimer, mostrava uma boa disposição física, não falava muito, mas caminhava, assistia à televisão, se alimentava direitinho. Estava sempre bem vestida, penteada e cheirosa. Estava melhor tratada do que o tratamento que ele poderia dar-lhe se continuassem sozinhos na velha casa.

Wilfredo estivera no cemitério. Pedira algumas flores no jardim da casa do médico e os levara para comemorar o que seria o vigésimo aniversário do caçula. Depusera uma rosa sobre cada lápide. Ficara o resto do dia conversando com sua Darliseide. Insistia no pedido de perdão. Não deveria ter insistido em viajar à noite naquela estrada esburacada. Graças à sua teimosia perdera a todos, a mulher e os dois filhos, e ele próprio jamais se perdoaria, mas precisava do perdão dela e das crianças.

Adenilton nada tinha a contar. O vigia, porém, conseguiu entender que ele fora pescador. Tivera seu próprio barco, mas algo não havia dado certo.

Ali reuniam-se quatro sofredores, homens que perderam o encanto da vida, o brilho dos olhos. Quatro histórias fragmentadas que armavam suas redes sob a marquise que o destino lhes dera como refúgio para as intempéries.

Espalhada a notícia pelo quarteirão,a solidariedade manifestou-se de todas as partes. Alguém lhes trouxe cobertores novos, uma senhora ofereceu-se para lavar suas redes e lhes trouxe outras. Numa noite havia sopa quente, noutra um arroz com feijão, ganharam chaves do banheiro do bar para se lavarem. Ganhavam uma enorme família dispersa pelos quarteirões em volta.

Mas tudo tem seu fim. Ao chegar àquela sexta-feira, Laurentino não encontrou Aristófanes nem as redes. Na porta do armazém, numa folha de papel ofício, escrito a pincel atômico, lia-se “Fechado por luto”. Laurentino esperou os dois amigos e nunca mais foram vistos sob a marquise. Há quem diga que dormem no coreto da praça.

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