segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Dois Em Um

Se havia algo a ser feito, bastava chamar o Dois em Um. Mulher prenha precisando ser levada para o hospital ou criança ofendida por cachorro? Chama o Dois em Um. Falta um braço pra descarregar o caminhão de tijolos? Chama o Dois em Um. Quem vai montar o móvel novo ou desmontar o velho para a mudança? O Dois em Um. Alguém aí sabe retirar, limpar e reinstalar o carburador? O Dois em Um sabe. Quem vai levar a carta da dona Suliva pro filho na roça? O Dois em Um leva.

Pau pra toda obra, disposto vinte e cinco horas por dia, Dois em Um ainda dava expediente na Ceasa carregando e descarregando caminhões em troca de alguns merréis e a xepa dos bacuris.

Certo dia estava lá Dois em Um desempenhando sua função quando chegou recado de seu Juvenal da farmácia. Precisava que ele levasse remédio para dona Eulália, lá no sítio dela. Longe prá burro...

Mas Dois em Um nunca recusou um favor pedido e lá se pôs em marcha, contando que desse tempo de ir e voltar antes da noite. Não que não fosse melhor de caminhar à noite. Afinal, não tinha aquele solzão pregado em dourado no céu azul. Mas é que à noite, sabe como é, sempre tem umas histórias. Medo não senhor. Prevenção.

Eram perto das quatro da tarde quando atravessou a porteira de dona Eulália. Entregou o remédio para a azia dela e bateu os calcanhares de volta.

Faltavam ainda coisa de duas léguas para chegar à cidade quando as cores do lugar começaram a esmaecer. Uma coruja piou, dando o toque de cair da noite.

De um lado e de outro da estrada, um canavial que se perdia de vista. Com a chegada da escuridão, era como se houvesse dois muros em torno da estrada. Perto da ponte do Rio Piaba, havia um recuo, um carreador usado pelos bóias-frias para se chegar ao eito. Pelo rabo dos olhos Dois em Um notou uma luz brilhante, fazendo facho para dentro da cana. Apressou o passo até quase uma corrida, pensando tratar-se de alguém caçando por aquelas bandas, quando ouviu um uivo assustador. Um “aiiiiiiiii” prolongado, como se fosse coisa do além.

Com o sangue gelado nas veias, correu como nunca havia corrido antes. As luzes da cidade estavam próximas já quando ouviu o ronco de um motor por trás de si, e a mesma luz brilhante iluminou seu rosto banhado em suor encardido de barro vermelho da estrada. Não se sujou porque a assombração chamou seu nome com a voz do Juvenal da Farmácia.

De dentro de seu fuscão 1500, ano 1974 e com um dos faróis apagados, Juvenal lhe ofereceu carona. Dentro, além do dono da botica, estava Marialva, puta famosa da cidade.

Meio escabriado, pé atrás, pensou em recusar a oferta, mas seus cento e trinta quilos pediam arrego depois da carreira. Como não tinha como Dois em Um viajar no banco de trás, Marialva lhe cedeu o lugar. Carrinho apertado, calorão ainda não dissipado, a catinga de suor e medo se misturavam com a colônia de mau gosto da puta e um cheiro pior: bosta. Não bostinha cheirosa de vaca, bosta de cagaço.

Pensou em perguntar, mas o silêncio dos dois inibia qualquer conversa.

Que diabos tinha acontecido naquele canavial? Que grito tinha sido aquele? Perguntava ou não?

Marialva morava ali pertinho, se bem que naquele fim de mundo não havia pertinho. Só os dois dentro do carro, Dois em Um arriscou:

- Seu Juvenal, que foi aquilo no canavial? Aquela luz e o grito?

- Num foi nada, esquece isso. Juvenal foi taxativo, não queria conversa.

Era pra Dois em Um esquecer, mas tem daquelas coisas que ficam encafifando a cabeça da gente que só tem paradeiro quando vem à tona. Não conseguiu dormir, rolava na cama com o facho de luz assombrando seus olhos e o grito machucando os ouvidos. Cardósia até quis brincar, mas as coisas do grandão não reagiam. Estavam assombradas também.

Mal amanheceu, pôs-se na estrada. A Ceasa que esperasse, Marialva tinha de esclarecer aquilo.

Bateu à porta da puta que, como toda puta, não tinha hora pra acordar e nem pudor pra atender à porta. Cara amassada e olheiras maiores que bolsa de feira, Marialva quase o manda de volta sem dizer palavra.

- Isso são horas de acordar gente trabalhadora, Dois em Um. Vá pra casa, homem, volte depois das duas.

- Peraí, Marialva, tem um negócio me deixando acabrunhado desde onte.

- E lá sou eu que vou desacabrunhar?

- Só você. Me diga o que aconteceu no canavial.

- Deixe pra lá ou pergunte pro Juvenal da farmácia.

- Ele num quis dizer. Mas eu num consigo parar de pensar. Me diga você.

- Digo não.

- Só saio daqui depois que disser.

- Num digo.

- Eu pago uma trepada pra senhora dizer.

- Duas trepadas, uma garrafa de cana e um maço de Gaivota.

- Fechado.

- Se disser pro Juvenal que eu disse, eu te mato.

- Digo não.

Cruzou e descruzou os indicadores em frente aos beiços e os beijou, um sinal inquebrável de promessa.

- Quando o Juvenal fechou a farmácia, passou aqui pra nós fazer umas traquinage. Mas num queria fazer na cama, nem na rede, nem dentro do carro... Diz lá ele que queria fazer no mato, no meio das cana.

Dois em Um ouvia, mas queria mesmo era o final da história.

- Pedi dobrado. Imagina, com cama, lençol e banheiro, ter quer fazer no mato. Coisa de doido. Pedi dobrado e ele pagou adiantado. Aí nós fomos. Entramos no mato, ele quebrou uns pés de cana pra fazer um colchãozinho, tirou minha roupa e mandou tirar a dele.

Em outra ocasião, Dois em Um teria se excitado com a prévia das prévias do casal. Mas a vontade de saber o acontecido desligava o resto do corpo.

- Vai, vai, conta logo

- Então. Nós dois deitados na caminha de cana, eu peguei a maçaranduba lá dele, enorme! Do jeito que ele fungava, pensei que já tivesse dura, mas tava era molenga que nem geléia. Daí ele pediu pra eu pegar nele. Quando eu disse que já tava pegando, ele disse que não. Ué, tu tá leproso, homem? Num tá sentindo não? Perguntei, daí ele baixou os olhos pra ver eu pegando. Daí soltou aquele gritão que tu ouviu, quase me deixa surda. Eu tava pegando era numa urutu-cruzeiro. Na hora que gritou, se cagou todo, eu atirei a bicha no mato, ele se jogou dentro das calças, até o cuecão ele deixou lá. Me jogou dentro do carro e disse que se eu contasse pra alguém ia queimar minha casa.

Desde esse dia, Dois em Um não presta mais serviço pra Juvenal, este é que faz tudo o que o grandão pede.


* Conto em parceria com o David Nóbrega

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