segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

A Morte da Morte

Voltando pra casa, tranqüilinho, com seu livro de passar o tempo no colo, Ceraldo lia no banco do ônibus, hora e meia até chegar em casa. O gordo ao lado, fedendo a suor e cebola, o imprensava contra a janela. Só mesmo uma boa leitura para abstrair-se daquele ambiente lotado, calorento e inquieto.

Sua absorção na leitura foi quebrada por um perfume adocicado, suave, coisa feminina. Virou a cabeça esperando dar de cara com o gordo de barba grossa e perfume e deu-se olhos nos olhos com uma morena daquelas de se fazer ceder o lugar. Desnecessário, ela já estava no lugar do gordo e o olhava com um sorriso nos olhos e lábios serenos.

- Importa-se?

- O quê? An?

- Importa-se que eu sente aqui?

- Ah! Não, claro que não. Se a visse em pé, cederia meu lugar. Uma mulher como você deve sofrer num ônibus lotado de malandros.

- Uma mulher como eu? Como, como eu?

Era a chance. O livro estaria aqui amanhã, essa oportunidade poderia se única.

- Bonita, cheirosa... Deliciosa, sem ofensa.

- Já pensou que essa casca é apenas uma fantasia para atrair homens como você?

- Homens como eu? E como eu sou?

- Inteligente, bonito, viril e heterossexual. Difícil encontrar tudo isso numa mesma pessoa.

Dali por diante a conversa foi ficando mais íntima, mais amigável. Ela não respondia nada diretamente, apenas o nome, Teresa, que coincidia com o que ele lia momentos antes: Teresa, a Filósofa, de Fernando Savater. Era o mote para a conversa se aprofundar, assim como o interesse de Ceraldo.

- O que você acha da gente descer no próximo ponto e tomar alguma coisa para nos conhecermos melhor?

- Estava torcendo que fizesse o convite.

Dali para um barzinho simpático que já começava a acender as luzes para a noite que se anunciava, não custou nada. Ele pediu um chope, ela um suco de limão, sem açúcar ou gelo. Ele pediu iscas de camarão, ela filé mal passado, sangrando ainda. Ele queria saber dela, ela parecia já saber tudo dele. A conversa fluía fácil. Ele era solteiro e morava só, ela não falava de seu passado. Ele gostava de esportes, futebol no sábado à tarde, ela caminhava muito, daqui para ali, de lá para acolá. Ele trabalhava num banco, ela tinha negócio próprio.

Passavam-se os chopes e os petiscos, ela não demonstrava interesse maior do que na conversa e o animava a beber. Até a terceira tulipa ele estranhou, depois desta, se entregou. Deixa o barco correr.

Chegou a um ponto em que já enrolava a língua, as palavras mais difíceis tropeçavam nos dentes antes de sair. Melhor marcar outro encontro, se a convencesse a uma noitada mais quente, passaria vergonha. Antes de pegar seu telefone, endereço ou apenas sugerir um cinema amanhã, Teresa pôs as mãos em seus ombros, fixou seus olhos nos seus, de modo que ele não pudesse desviar o olhar e a atenção. Não sorria, olhar sério, voz mais grave e baixa, mas de uma firmeza que aprisionava Ceraldo por inteiro:

- Preste atenção que só vou falar uma vez.

O rapaz retesou-se entre as mãos firmes de Teresa e da sisudez do timbre.

- Eu sou A Morte e vim te buscar. Amanhã você não verá a luz do dia.

Estaria suficientemente bêbado para virar motivo de chacota? Que brincadeira de mau gosto ela estava propondo? Não conseguiu protestar. Antes que a voz trôpega se fizesse, ela continuou:

- Na verdade, sou apenas uma assistente, você é minha primeira encomenda, desculpe o mau jeito. Eu deveria ter virado aquele ônibus e imprensar sua cabeça entre dois bancos, mas fiquei com pena de machucar aquela senhora com as duas crianças que estavam lá no fundo.

Falando para si mesma, um momentinho de devaneio:

- Acho que vou levar um esporro da chefa, hoje...

Ceraldo ensaiou um protesto, trazendo A Morte de volta ao assunto que a trouxe ali:

- Bom, já que vou ficar de castigo mesmo e ainda não me habituei a essa função de ceifadora, vou lhe dar a chance de um último pedido, assim, que nem nos filmes de bang-bang de antigamente.

As mãos dela já não eram gadanhos, mas mãos femininas em carinho. Já não lhe apertavam os ombros, afagavam as faces como a uma criança chorosa.

- Vamos lá pra casa?

Era efeito da bebida, a irresponsabilidade do porre, o temor da morte, a incompreensão do que se passava? Pouco importava. Estava com um tesão incontido por aquela morena de olhos rasgados e tez de índia. Queria aqueles cabelos curtos emaranhados em seus dedos enquanto se esforçasse para não falhar entre suas pernas.

- É esse seu último desejo? Quer morrer em casa?

- Apenas a primeira parte dele, o resto te conto na minha cama.

A Morte não é má nem boa, apenas necessária, lição que Teresa aprendera nas instruções antes dessa missão. Já que dera ao condenado o último pedido, que cumprisse sua palavra.

Ceraldo abriu os olhos pesados do álcool da noite passada, via a luz entrar pela fresta da cortina. Era a luz do sol! Teresa devia ser uma louca ou drogada com aquele papo de último desejo, uma fantasia sexual que funcionara, como funcionara. Que noite ela havia lhe dado!

Olhou a moça desnuda sob a coberta abrir os olhos devagarzinho, um sorriso tatuado nos lábios bem desenhados e o “bom dia” preguiçoso açodando seus sentidos.

- Então, não vai mais me matar?, não conteve o tom de ironia.

- Não, acho que vou pedir à chefa pra me mandar de volta à vida. Não havia conhecido esse lado bom da última vez que passei por aqui.

Teresa levantou-se num pulo, correu para o banheiro enquanto gritava:

- Vou falar com a chefa e volto à noite para morrermos juntos mais uma vez.

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