O bebê nasceria a qualquer momento. Adanálio alertou os colegas de trabalho e os chefes que, assim que a esposa telefonasse dando o alarme, deixaria tudo como estivesse e partiria correndo, não perderia por nada o parto de seu primeiro filho.
Precavido, durante toda a semana voltava para casa pelas ruas que denominava rota de fuga, ruas laterais onde o trânsito era bem menor que o das grandes vias. O trajeto ficava um pouco mais longo, mas poderia ser percorrido em vinte minutos, enquanto que pelas vias principais poderia levar quarenta minutos ou mais. Familiarizava-se com cada buraco, esquina, semáforo.
O expediente matutino estava no meio quando o celular tocou.
- Amor, vai ser agora.
A mensagem curta sequer foi ouvida até o final. Pulou da cadeira gritando "tá na hora!". Estabanado saiu correndo do escritório em direção aos elevadores antes dos colegas recuperarem-se do susto com o grito que quebrara a calma habitual.
- O elevador! Segura o elevador!, bradava durante a corrida. Para sua sorte a porta abria-se no justo momento. Entrou, a porta fechou-se. Estava subindo. Droga!
Apertou o botão 6 do andar imediatamente superior. A porta abriu-se mais lenta que sempre. Saltou. As escadas. Desceu como um atleta de cem metros rasos. Passou a toda pelo saguão, pela portaria, pela porta rumo ao estacionamento.
O carro na vaga 1. As chaves! Esquecera-as no bolso do paletó pendurado na cadeira. Cérebro rápido como um ladrão, pega o celular e liga para o escritório. Os dois toques antes do atendimento pareciam um ano.
- Sanderléia, rápido, esqueci a chave no bolso do paletó. Rápido! Joga pela janela.
Sanderléia prestativa, mas com um raciocínio lento, esbaforida abre a janela, vê Adanálio na calçada fazendo gestos como um operador de taxiagem, não entende o que sinalizava o quase pai, atira o paletó com a chave no bolso.
Aberta ao vento, a roupa faz acrobacias e cai sobre a marquise, lenta como um pára-quedas. Xingava enquanto corria para a portaria, "mulher burra!".
O porteiro não entendia nada pela segunda vez em poucos minutos ao vê-lo passar como um raio. Nada de elevadores. Escadas subidas de dois em dois degraus. Corredor. Abre a porta da sala de espera do escritório do advogado num supetão. A secretária solta um grito, atira os papéis que segurava para o alto, tropeça no bebedouro derrubando o garrafão quase cheio que se arrebenta no chão. Cachoeira mineral que alaga o carpete e os documentos.
Em sua carreira irrompe no escritório. O advogado, em choque, vê sua peruca voar enquanto despenca da cadeira aos gritinhos. A cliente idosa reage apenas com o esbugalhar dos olhos e a cara de pânico. A janela travada por causa do ar condicionado. Pega a cadeira vazia do advogado, agora encolhido no canto da sala em posição fetal, e a arremessa contra o vidro, lançando cacos em todas as direções e o barulho de um trovão seguido da sirene do alarme.
Salta para a marquise, pega o paletó. Tem vontade de se jogar dali direto para a rua, mas, sensato, percebe que altura não recomenda. Salta de volta para o escritório. Na porta já coalhavam curiosos. A secretária histérica grita "pega! Pega!". O contador tenta segurá-lo, a dentista, o office-boy, a pequena multidão. Com os braços agitados como um nadador frenético, tentava se desvencilhar enquanto berrava "sai! Meu filho vai nascer!". O cotovelo acertou um nariz, o dedo entrou num olho, a palma da mão acertou uma orelha, viu uma dentadura voando.
Sob impropérios e palavrões a escada que desceu voando. Portaria. Uma peitada no moto-boy jogando cada um para um lado aos tropeções, reequilibra-se como Pelé e vê um capacete no ar seguido por dois envelopes. Calçada. Estacionamento.
- Moto-boy filho de uma égua!
Xingava não pela trombada, mas pela moto estacionada fechando seu carro. Tentou arrastá-la. Não conseguiu, as rodas travadas. Atirou a moto no chão e, com uma força que não sabia ter, afastou-a para longe do caminho dos pneus. Abriu a porta, atirou o paletó no banco do carona e partiu a mil. Ainda pôde ver a turba saindo pela portaria à sua caça.
Viraria à direita no primeiro semáforo. Fechado! Um ano para abrir e os carros da frente impedindo que cometesse uma infração. Abriu. Vira. Acelera.
Como previra, o trânsito era tranqüilo naquelas ruas. Poderia aumentar a velocidade, na maioria vias preferenciais. E se houvessem crianças brincando na rua? Um cachorro? Um velhinho atravessando? Corria apertando a buzina com força desejando que fosse uma sirene.
Voava pelo asfalto liso. Ao passar por uma esquina, teve a impressão de ter visto um policial numa moto na transversal à direita. Estava certo, era um policial que se apresentava à sua retaguarda, sirene e luzes ligadas.
A cidade estava muito violenta, a polícia muito tensa. Melhor parar para não correr o risco de receber um tiro de um policial afoito que já se comunicava pelo rádio, provavelmente pedindo reforço, via pelo retrovisor. Seta para a direita, reduz a velocidade e encosta no meio-fio. O policial pára alguns metros atrás, saca a arma, agacha-se atrás da moto.
- Rápido, seu guarda, rápido. Multa logo e me libera, falava entre dentes.
- Abra a porta devagar e saia do carro, gritava o policial.
Pombas! Tem que ser devagar?. Obedeceu, mãos para o alto.
Ele não queria sair devagar, desejava apressar as coisas, mas não faria nada impensado que pudesse fazer seu filho nascer órfão de pai.
O policial com a pose de autoridade que é peculiar à função, talvez esperando uma oferta de propina que não viria jamais do correto Adanálio, ou apenas exercitando o poder, dava sermão e multa. Inquieto o quase novo pai ousou interromper e explicar que a esposa o aguardava para que a levasse à maternidade, daí tanta pressa.
- Por que o senhor não disse antes? A minha também está grávida e eu imagino seu desespero. Não se desespere, cidadão! Siga-me que lhe farei a escolta, falava de peito inchado o policial do alto do seu coturno e importância.
Agora eram dois sem freio pelas ruas do bairro: o policial, sua moto e sua sirene, e Adanálio com seu desespero e a camisa empapada de suor.
Oitenta, cem quilômetros por hora pelas ruas estreitas. Os poucos carros que vinham à frente encostavam ao som e luzes da polícia. Agora as coisas estavam quase perfeitas.
Malditos vândalos! Roubaram a tampa do bueiro!
O policial viu a tempo de reduzir a velocidade, mas não de evitar a queda. Saiu catando cavaco pelo asfalto, moto estraçalhada quicando sem rumo, a freada brusca de Adanálio que mal espera o carro parar e já salta correndo em direção ao policial deitado que mantinha a pose de herói:
- Vá, cidadão, sua esposa precisa mais do senhor do que eu nesse momento.
Com o celular na mão e ligando para o serviço de ambulância, Adanálio sabia que não poderia abandonar o soldado sozinho sobre o asfalto fervente e sob o sol escaldante.
Já juntava gente. Turba, burburinho, os moleques depenando a moto, as velhas e seus "coitadinho", os inventores de histórias e suas várias versões, o calor infernal e nada de ambulância.Juntos chegam o socorro e a rádio patrulha. Pressa no socorro, vagar nas explicações. O próprio guarda ferido fala a um colega o ocorrido, ajudando a liberar Adanálio.
Dificuldade em se livrar da multidão. Atenção no caminho, velocidade controlada e nervos quase. Nada mais poderia dar errado. E não deu. Caminho livre e sereno até o edifício onde morava no oitavo andar.
"Olá" para o porteiro, corrida até o elevador, aperta o botão e a luz não acende.
- Tá sem energia, doutor, faltou agorinha.
Escada. Por sorte não parara com o futebol domingueiro, o preparo físico seria essencial. Subida, dois em dois degraus, oito andares. Rezava enquanto subia.
Na porta do apartamento o bilhete curto e duro: "Fui de táxi, seu irresponsável!".
Exausto, sentou-se no chão, recostou-se na porta, respirou fundo e tomou uma decisão definitiva e irrevogável:
- Vasectomia.
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
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As mulheres nunca estão satisfeitas, não é isso que vc pensou ao escrever? E, de certa forma acerta. Faz parte da histeria feminina. Mais uma dentro, Marcos.
ResponderExcluirEste está no último livro. Ainda bem que eu tenho seus dois livros de contos e espero o terceiro!
Excelente escritor.