segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O Preço

Àquela hora da madrugada o passeio era desaconselhável, mas a caminhada era inevitável. O último navio havia sido carregado para seguir rumo ao nascer do dia, a ele, Ademar, não havia alternativa, recebia ordens e as cumpria da melhor forma, seu pão e leite dependiam disso. Se o navio precisava receber a carga, ele e os demais trapicheiros, o faziam, fosse de dia ou tarde da noite, isso pouco contava, o que importava era o dinheirinho aquecendo a algibeira.

Fora o último a se desocupar, os companheiros já haviam saído depois de receber a féria do dia e talvez se encontrassem em algum mafuá tomando cachaça e passando as mãos nas putas. Ademar tinha uma missão a mais, desligar os guindastes, entregar as chaves ao preposto das docas e passar no escritório para receber o dinheiro acumulado em dois dias diretos de muito suor e pouca água.

O silêncio do cais só era arranhado pelo marulho batendo no muro de arrimo. Por economia e falta de necessidade, poucas lâmpadas iluminavam o pátio; o vento, ao balançar as lâmpadas incandescentes e amarelas, provocava estranheza.

Desde que o corpo de Amarildo foi encontrado entre containeres no dia seguinte ao pagamento, sem um tostão nos bolsos e a garganta cortada de lado a lado, o medo tem feito a turma sair junta, uns zelando pelos outros. Nessa noite, porém, o cansaço coletivo não permitiu que os demais esperassem por ele.

Ouvia o eco de seus sapatos vindo dos caixotes enormes, das paredes, nos cascos altos dos navios em espera. Nenhum outro som que seus ouvidos assustados e atentos tentavam encontrar soltos no ar da quase madrugada. No máximo um chiado de rato ou uma pequena peça, um pedaço de metal, um porrete improvisado de madeira se arrastando, provavelmente pelos mesmos ratos.

Tentou andar mais rápido, sair dali acelerado, mas a reverberação das pisadas se confundia com os demais sons que pudessem surgir, não poderia ouvir o inimigo de punhal que esperava por ele e seu suado pagamento. Reduziu o ritmo das passadas, alargando os passos. Se alguém o visse caminhando assim, imaginaria que contava o tamanho do caminho que percorria. Ninguém o observava, tinha certeza, nem mesmo o ladrão. Estava assustando-se à toa.

Súbito frio na espinha e estancar das pernas ao ver surgirem duas bolinhas verdes piscantes por detrás de uma caixa de ripas. Apenas os olhos de um gato em busca de comida e diversão refletindo as luzes que vinham das costas de Ademar. Entre dentes, para não se assustar ainda mais, xingou o gato, “vai assustar a mãe!”. Respirou fundo de alívio e tensão. Voltou à caminhada medida e larga.

Já olhava o portão que permitiria sua passagem para a rua. Longe, mais longe do que nunca esteve. Apressava o passo novamente ou se tranqüilizava esperando o portão se aproximar em seu próprio ritmo?

Evitava olhar para os lados, medo de ver o que não queria. Qualquer sombra poderia ser confundida com o bandido que o cercava. E se este serzinho desprezível e odioso aparecesse à sua frente, punhal em punho, ou seria uma peixeira?, o que faria? Entregava tudo e se fingia de morto?, se acovardaria?, enfrentaria o sujeito com a força de suas mãos calejadas e fortes?. Era forte, mas nunca brigara na vida, não teria chance com as mãos desarmadas, ainda mais contra um assassino sem qualquer hesitação ou escrúpulo. À direita, sob a empilhadeira, viu um pedaço de vergalhão (como essas coisas iam parar no pátio das docas? Sempre se perguntava isso quando encontrava algo que não combinasse com o cenário). Desviou-se da rota, ajoelhou-se ao lado da máquina e esticou o braço para pegar sua arma improvisada. Ao pegar o metal, a vista desviou-se para as botas do outro lado do veículo. Dois pés, tudo o que via, parados de frente para si, como se o olhando nos olhos. Serpentes negras de olho na vítima.

Esqueceu-se do vergalhão, soltou um grito de socorro e saiu em carreira com seus mais de cem quilos em direção ao portão que teimava em afastar-se.

Sentia o quente da urina descer pelas pernas enquanto corria, ou tentava, gritava como uma menininha que via uma aranha em sua casinha de bonecas, não tinha tempo de envergonhar-se, apenas corria e gritava. Pensava passar pelo portão como um centro avante que dribla o beque, bateu o ombro, rodopiou sobre o próprio eixo vertical estatelando-se na calçada. O ombro doía, tentou apoiar-se nesse braço para se levantar e continuar a corrida até o boteco onde imaginava que se encontravam os colegas. A dor aumentou, a força não veio, bateu a cara no cimento. Já imaginava o algoz a poucos metros, tentava arrastar-se como um soldado sob arames farpados com a ajuda de um único braço, era muito peso para um só braço. A eternidade se resumia naqueles poucos segundos. A voz já não saía, garganta seca, pulmões ardendo.

Sentiu a pisada forte nas costas empurrando-o de volta ao solo. Na nuca o frio da ponta de uma faca que imaginava brilhante sob a luz do poste. Ninguém o salvaria? Onde estavam os vigias? Fez força com o braço bom para tentar levantar-se, mas a pisada o imobilizava. Morreria como um porco no punhal do magarefe?

“Pai nosso que estais no céu...”, baixinho pedia proteção. O pé que o continha foi substituído pelo joelho e uma voz rouca, num sussurro, acompanhada por um bafo de cigarro barato, ao pé do seu ouvido:

- O dinheiro.

A resposta num filete sem força:
- No-no bolso.
- Pega.
- Que-brei-o-bra-bra-ço.
-Pega!, percebia que a voz vinha com raiva.

A careta de dor foi inevitável. Via sua única chance de sair com vida dando o dinheiro que penara para ganhar. Não era pouco, pelo menos para seu padrão de fortuna. Dois dias inteiro de trabalho, quatorze horas seguidas em cada dia. Tentava controlar os movimentos limitados pela dor. As pontas dos dedos já tocavam as cédulas quando sentiu o corpo do bandido cair pesado, inteiro sobre o seu, sufocando-o. Veio o alívio de sentir o corpo sendo retirado de sobre o seu. Vira de barriga para cima e vê seus companheiros atirando o corpo como faziam com os fardos de algodão nos porões dos navios. O baque surdo do bandido inerte na calçada.

Com um pedaço de madeira numa das mãos, Olivério lhe esticava a outra como auxílio para levantar-se. Seis estivadores formavam um semicírculo com ele e o corpo desmaiado no centro.

Levantou-se com a ajuda de dois deles. Antes, porém, de mostrar sua gratidão ou mesmo odiar aquele que o mataria, recebeu de Olivério a sentença inesperada:

- Tua vida custa mais do que você ganhou hoje. Passa pra gente.

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