sábado, 15 de maio de 2010

Menino

A criança, pouco mais velha que um bebê, menino marrom de calça três quartos, no meio da roda de outros iguais, morde a cabeça do dinossauro verde, alheio à algazarra.

Pulos e gritarias são acompanhados pelos seus sentidos, aguçada atenção, alheia à cabeça mastigada, suplício no plástico do bicho extinto.

Velho, vejo e ouço a balbúrdia, desatento a ela, o foco está no menino mestiço, traços de índio, árabe, negro e sabe-se lá quantas outras etnias. Enfim, brasileiro. Perninhas tortas de pose parada, móveis apenas olhos e mandíbula.

Como um gato frente à gaiola de periquitos coloridos, o menino marrom observa, não participa, resume-se à expectativa silenciosa, distante na proximidade.

Havia um menino assim  ele ainda se reflete na retina de trás para a frente, esconde-se no anverso do olho e vê agora seu passado tímio equilibrando-se sobre as pernas finas, dois canudinhos de juta, joelhos proeminentes e pele marrom. Os olhos veem o passado.

Se o menino, صبي, niño, curumim, pouco mais que um bebê me mirasse, não veria o futuro, não se reconheceria no velho bobalhão que o fitava por trás da resina dos óculos.

O que veria o guri? A regressão se faz de novo, busco no empoeirado bornal que carrega o passado a tiracolo as sensações de quando via um velho. Rebusco nos papéis amarelados em que escrevi longa história e não acho episódio. Não me lembro de ter visto velhos.

No saco de reminiscências procuro os velhos da minha infância de pouco mais que um bebê. Seu Luizão com quem meu pai trocava bolsilivros… O Sargento Meireles, amigo do meu velho particular, mas que não era velho como me lembro dele agora, a quem chamava de “Cajueiro”, nunca soube o motivo. O Sargento Meireles não podia ser velho, já que meu pai não era. Eram amigos da mesma idade ou quase. O padre americano, grande e arroseado nas bochechas queimadas naquele sol do Equador… Dona Maria, a primeira professora. Não, a Dona Maria estava velha quando a reencontrei nas ruas de Guajará-Mirim, trinta anos depois e era essa a memória visual que eu tinha dela. De outras professoras não lembro, se eram velhas ou não, se existiram ou foram apenas obrigações de infância. Passaram em branco.

Quase não havia velhos na minha meninice. Não tive avós perto, meus pais eram jovens para conviver com velhos. O que o menino dos joelhos de duas bolas sentiria se me olhasse continua desconhecido. Talvez sentisse carinho se ele, sortudo, tivesse avô. Talvez medo se uma babá malcriada o ameaçava com a vinda do velho do saco. Talvez indiferença se, assim como eu, não houvesse velho em sua vida.

O que eu sinto, porém, é bem claro. Sinto saudade.

 

©Marcos Pontes

domingo, 21 de junho de 2009

Maloca Descoberta

Era um acontecimento festivo quando algum teco-teco ou helicóptero pousava naquela pista de piçarra cercada de mato. A molecada do povoado chegava ao campo antes do aparelho, avisada pelo barulho longínquo do motor, fácil de ser ouvido naquele silêncio espesso da floresta.

Em algumas das viagens os passageiros eram cientistas que se embrenhavam na floresta cheios de tralhas esquisitas, mochilas, redes de dormir e de pescar, fogareiros, armadilhas e uns troços que não conseguíamos identificar o que era ou pra que serviam. Vinham sempre acompanhados de um ou dois índios ou por um mateiro experiente.

Outras vezes, no lugar dos cientistas, vinham uns homens louros com suas calças pretas de tecido fino, gravatas vermelhas, camisas brancas de mangas curtas, sapatos lustrados e um livro preto que apresentavam como o livro da salvação das almas. Reuniam-se com os idosos e conversavam coisas ininteligíveis num português enrolado. As crianças os cercavam assuntando o que era dito ou gritado aos olhos fechados e seguido de aleluias e graças a Deus e outras coisas sem sentido como complementos das frases interrompidas.

De helicópteros vinham soldados e médicos, normalmente na manhã seguinte ou na seguinte à seguinte à Lua cheia. Os soldados sem fuzis ajudavam a consertar telhados e paredes, pintavam as paredes do barracão comunitário, colhiam palha para recobrir as palhoças ou ajudavam a reparar os cascos das canoas. Os médicos usavam um aparelho de três pontas e nome esquisito. Duas pontas eram enfiadas no ouvido lá dele e a terceira, com uma rodela preta, encostavam no peito das pessoas, ou nas costas, e mandavam respirar fundo. Mandavam abrir a boca e mostrar a língua dizendo “aaaaa”. Faziam umas perguntas estranhas para as mães: “como são as fezes do bebê?”, “ele tosse à noite?”, “a menina reclama de dor de cabeça?”, “quantos dedos você está vendo?”. Ser doutor é fazer isso? Coisa mais besta!

Depois davam pílulas, vidros de beberagem azeda e obrigavam os mais velhos a nos darem outra dose à noitinha, antes de irmos para a rede. Pior quando enfiavam agulhas na bunda ou no braço e empurravam para dentro da gente uma água de dentro de tubos de vidro. Diziam que era remédio, como se já não tivéssemos remédios para tudo no meio do mato.

Mesmo sabendo que íamos sofrer a tortura de ouvir gente gritando coisas que não entendíamos ou seríamos obrigados a engolir alguma coisa amarga ou espetados por agulhas, não resistíamos à tentação de vermos aquelas máquinas barulhentas descerem como se fossem se espatifar no solo, depois deslizarem levantando poeira, ou os helicópteros abrindo um redemoinho de pó vermelho no meio do mato, descer devagarzinho como se fosse um beija-flor rajado. Era diversão para quebrar a rotina.

Um dia ouvimos o barulho ainda longe, corremos para a pista. Podíamos estar enganados, mas não era dia de vir nem médico, nem louro alto e nem cientistas, se bem que os cientistas não tinham uma programação certinha. O barulho também era diferente, não parecia o barulho dos dois motores do avião dos cientistas ou o motor mais fraquinho dos homem da bíblia, muito menos o dos helicópteros.

Nós todos ladeando a pista quando vemos um avião de apenas um motor aparecer acima das árvores. Balança de um lado para o outro, embica em direção à pista, vem meio de lado como gavião na ventania. Não era azul como o dos moços louros e nem verde como o dos cientistas, tinha listras verdes no rabo e nas asas. O piloto também parecia mais estabanado. A roda bateu com força no chão, quicou, pisou de novo com força e logo começou a frear, não era aquele pouso longo e suave que a gente estava acostumado.

O piloto não manobrou para a frente do barracão, como os outro faziam, foi lá para o fim da pista, longe da gente. Ficamos parados esperando ele voltar, mas ele não voltou. De longe vimos descerem três homens que começaram a tirar as coisas da barriga do bicho, cada um deles com uma espingarda na bandoleira. Ficamos olhando um para a cara do outro esperando que alguém tomasse a iniciativa de correr até lá e saber as novidades. Não sei quem foi o primeiro, quando vi já tinham três correndo à minha frente e eu os segui.

Já estávamos no meio da pista quando vimos o avião dar a volta, apontar o nariz na direção da gente e começar a girar as hélices com força, como faz quando vai decolar. O piloto não devia estar nos vendo, acelerou com tudo em nossa direção. Mal tivemos tempo de nos jogar de lado, gritando feito bando de macacos que vêem onça. Tirando os arranhões do peito e nos cotovelos, ninguém se machucou.

Sem entender o que havia acontecido, passamos algum tempo olhando uns para as caras abestalhadas dos outros, cada qual contando para onde correra para se livrar de ser estraçalhado pelo teco-teco. Os pais vinham correndo ao nosso encontro, as mães gritando, até uns gritos de “aleluia!” eu ouvi.

Um dos nossos jovens adultos, mais calmos os ânimos, perguntou para onde foram os três homens desembarcados. Nos viramos todos em direção ao final da pista onde os víramos pela última vez. Haviam se embrenhado.

De volta às casas, um ar pesado, cada um especulando o que fora aquilo sem qualquer teoria definitiva, quando um dos mais velhos chamou três homens mais novos, dois solteiros e um casado, e os mandou ir atrás dos homens embrenhados na floresta para saberem o que estava acontecendo.

Não havia arma de fogo na aldeia, nossos homens caçavam e pescavam com zagaia e arco e flecha, usavam facão que os soldados trouxeram de presente e não tínhamos inimigos. Os moradores das aldeias vizinhas eram nossos amigos e costumávamos trocar carne, mandioca, farinha, peles, o que a floresta nos desse a mais. Não tínhamos necessidade de espingarda ou revólver. Além do mais, não tínhamos porque desconfiar das intenções daqueles homens, talvez não tenham nos visto, talvez tivessem pressa para ajudar algum cientista perdido na mata. Nós vimos os cientistas e soldados falarem com gente longe por meio de rádios. Talvez aqueles homens tenham falado com os cientistas que estavam havia dias na floresta e eles precisassem de ajuda. Se fosse assim, nós poderíamos ajudar.

Os homens saíram depois de comer. O sol estava no alto. Fomos atrás deles, eu e mais oito garotos, até a beira da pista. Os vimos dirigirem-se para o lugar onde os três homens de espingardas e mochilas desceram do avião. Vimos Andirá se acocorar e identificar o caminho dos estrangeiros. Apontou para uma pequena abertura no mato e seguiram os três dos nossos por ali.

Ainda ficamos um tempo especulando e aguardando, mas sabíamos que poderia demorar a volta dos homens. A espera foi ficando sem graça. Voltamos para a aldeia e para as brincadeiras.

Na boca da noite, como quase todos os dias, os adultos acenderam a fogueira na praça, sentaram-se em troncos e puseram-se a conversar. Estavam todos lá, entre nós os pais dos dois rapazes solteiros e a mulher do casado que foram atrás de notícias dos estrangeiros. Naquela noite não ouvimos estórias engraçadas e nem planos para o dia seguinte. Era muito silêncio só quebrado muito raramente por uma ou outra especulação sobre a demora do trio. Para nós, crianças, a noite não estava agradável. Naquele silêncio, o sono não demorou, fomos nos retirando aos poucos.

Acordei na manhã seguinte com o alvoroço vindo do barracão. O vozerio dos homens assustava mesmo sem entender o que diziam à distância. Saltei da rede num salto e corri até lá. O Sol ainda nem havia se levantado. Fui parado no caminho pela minha mãe. Ninguém pode entrar lá, me disse, é reunião só para os homens. Me virando, reparei que todas as mulheres estavam à porta de suas palhoças, algumas com bebês no colo, outras com ar de preocupação nos olhos, as mães de Andirá, Iraputã e Xambré formavam um grupo separado, conversando agitadas, tensas.

O vozerio dos homens e as conversas das mulheres eram em nossa língua nativa, que nós, crianças, sabíamos muito pouco. Não sei por que, mas de uns tempos para cá os adultos nos obrigavam a falar em português. Nossa língua se tornara um segredo só conhecido pelos mais velhos. Só entendíamos uma ou outra palavra, “floresta”, “armas”, “perigo”, “forasteiros”, perdidas no meio de expressões inteiras.

De repente o silêncio e uma cantoria masculina, solene, séria, em nheengatu. Uma cantiga antiga, dos tempos de nossos ancestrais, que falava de coragem e apoio que cada um de nós tem que dar ao outro.

Não demorou muito a cantoria. Cessou num ato, seguindo o silêncio, a saída de Mariú, Kaloré e Irajá, caras pintadas, borduna, arco, flecha e facão, à frente dos demais homens. O cortejo seguiu em direção à pista de pouso, nenhuma palavra, apenas o roçar de seus pés na terra nua. Tentei acompanhá-los, mas fui detido novamente pelas mãos da minha mãe. Os homens sumiram por trás da última casa para reaparecerem pouco depois sem os três paramentados.

O dia foi todo de tensão. Pouco se falava, apenas o essencial. As mulheres faziam suas tarefas de preparar a comida, serviam às famílias, depois sumiam para se reunirem com as mulheres das famílias dos seis homens que se encontravam em missão. Os homens comiam e voltavam para o barracão onde pitavam cachimbo e conversavam em voz baixa.

Mesmo as crianças que pouco entendiam o que se passava, entendiam que não era dia de brincar. Até tentamos nadar ou pegar algum peixe com as mãos, mas o espírito desanimador dos adultos nos contagiou. Preferimos compartilhar com eles a apreensão e a preocupação pelo sumiço dos seis homens.

Já o sol começava a despejar-se sobre as copas quando ouvimos um grito longínquo, depois outro e mais outro. Era Kaloré avisando da chegada. Aqueles gritos tiveram o efeito de um raio no meio da praça. Corremos todos, crianças e jovens, mais rápidos, à frente, seguidos dos homens, mulheres e velhos. Não sabíamos se ficávamos alegres ou mais nervosos, não havia certeza de quem voltava. O grito de Kaloré anunciava apenas sua chegada e de novidades.

Na luz vermelha do Sol filtrada pelas folhas víamos apenas um amontoado de corpos e pernas caminhando para cá. Paramos à beira da pista de pouso e esperamos o grupo se aproximar. Com as mãos amarradas por cipós, uns aos outros, no meio vinham os três estrangeiros. Não apresentavam ferimento aparente, apenas a vermelhidão do que poderia ser um tabefe na face esquerda de cada um, roupas rasgadas, um deles com bota em apenas um dos pés, e muito suados. Ladeando-os vinham Kaloré, Mariú e Irajá.

A um sinal do homem mais velho de nós, os estrangeiros foram levados ao centro da praça. As crianças gritando insultos e as mulheres pedidos para que devolvessem nossos homens. Os homens da aldeia emitiam ordem graves, curtas e que não admitiam desobediência para que os prisioneiros andassem, parassem, calassem.

Nosso homem mais idoso, borduna na mão apontada para o peito do homem mais velho deles, perguntou onde estavam Iraputã, Andirá e Xapré. O homem disse que não sabia quem eram. Nosso velho insistiu, o homem continuou negando. As vozes foram se exaltando, nosso velho inquiria e o homem negava, os outros dois calados, olhos arregalados.

Os velhos se afastaram do grupo, confabularam em sussurros em nossa língua nativa, voltaram para o grupo sob nossos olhares curiosos, excitados e nervosos. O mais velho mandou que separassem os homens, cada um deveria ser levado para trás de uma das palhoças, uma afastada da outra, de forma que nenhum poderia ver ou ouvir os outros, a não ser que gritassem.

A noite caiu e nós, crianças e mulheres, das portas de nossas palhoças, víamos os velhos indo e voltando de um prisioneiro a outro por toda a noite. Atravessavam a praça, conversavam com um dos três homens, voltavam a atravessar a praça e iam onde estava o segundo e isso se repetia incontáveis vezes.

Um dos homens estava sendo vigiado por três dos nossos rapazes bem atrás de nossa choça. Quando os idosos vinham para cá, eu entrava em casa e ia lá para o fundo, encostava o ouvido numa das frestas entre as tábuas da parede e tentava diminuir até o som do coração para ouvir melhor o que diziam.

O velho perguntava sempre a mesma coisa, onde estavam nossos rapazes, e o homem negava, chorava, dizia “juro por Deus”, pedia água que lhe era negada, pedia comida que também não era dada. Depois de três ou quatro insistências, os velhos o abandonavam com os vigias e iam em direção a outro grupo escondido atrás de outra casa.

Talvez para deixar os prisioneiros famintos e sedentos ainda mais vulneráveis, os velho

inquisidores passaram a fazer as perguntas enquanto comiam uma capivara dourada no fogo, carne assada cheirosa, em plena madrugada, mesmo assim os homens não falavam.

O céu já começava a mesclar seu azul com o amarelo do Sol nascente, quando os homens foram trazidos para o centro da praça. Os idosos discutiam a um canto, só víamos seus gestos, nem murmúrios chegavam aos nossos ouvidos. De repente o grupo desfez-se e todos se aproximaram dos três homens do avião. Foi ordenado para que os cipós que os amarravam fossem cortados. Mulheres trouxeram caldo de capivara em cuias e beiju enrolados em folhas. Outra trouxe uma panela de barro com água.

Comida e bebida foram oferecidas aos prisioneiros que estavam deixando de ser prisioneiros. Comeram meio tímidos a princípio e vorazes depois de perceberem que era uma oferta franca.

Saciadas fome e sede, os homens foram libertados. Não houve pedido de desculpas, apenas a admissão de que fora cometido um erro de julgamento dos nossos homens que acharam que os três primeiros rapazes a se embrenharem haviam sido presos ou mortos pelos estrangeiros. Como jamais alguém resistira a interrogatório tão demorado e cruel, nossos velhos acreditaram na inocência dos três homens e os libertaram alimentados e com carne, farinha, mandioca e beiju. Esse era nosso pedido de desculpas.

Ficava, porém, a pergunta inicial: Onde estavam Xambré, Andirá e Iraputã? Eram jovens, mas experientes, conheciam cada pedaço da mata e seus segredos. Teriam sido encantados por Iara ou engolidos por Boiúna?

Logo se formaram grupos de voluntários para irem em busca dos rapazes. Cada um queria demonstrar sua solidariedade e coragem. Os velhos conselheiros tiveram alguma dificuldade em organizar os grupos de três que se revezariam nas buscas.

Mal os homens sumiram depois das casas, quase correndo para saírem logo dali, os três primeiros rapazes seguiram o mesmo curso. Foram muitos dias de buscas. Os trabalhos de plantar e caçar estavam comprometidos, sempre faltavam seis homens para o serviço. Ou estavam no mato ou descansando depois de dois dias de missão.

Os relatos eram sempre os mesmos, não havia rastro, nenhum sinal sequer das penas da pulseira que Xambré carregava ou das pinturas de urucum de Andirá em algum pedaço de pau. Havia uma ou outra pista de que eles haviam pisado numa beira de água, mas esses sinais iam sumindo dia após dia, já desaparecidos de vez, e acabavam no nada, numa clareira sem mato, pouco mais de três metros de diâmetro.

Os velhos determinaram o fim das buscas, algum bicho maior e mais feroz que eles havia comido os três e sumido para sempre. Melhor ninguém mais ir para aqueles lados. As caçadas só aconteceriam para o outro lado, a pesca no rio mirim do lado do Sol nascente, não mais para os lados da lagoa. Se os três homens fossem comidos para lá, problema deles.

Passaram-se alguns dias e os três homens reapareceram lá no final da pista de pouso. Não traziam suas tralhas, apenas as espingardas. Não se aproximaram. Eu e mais os meninos que brincavam com os macacos nas árvores da margem da pista, nos escondemos no mato e ficamos espiando. Tínhamos medo daqueles homens que poderiam ter sumido com nossos rapazes e tinham armas. Eles poderiam querer vingança depois do que passaram. Um de nós deveria ir avisar o pessoal da aldeia, mas estávamos tão temerosos, que ninguém arriscou se mostrar.

Nós escondidos no mato de olho neles e eles sentados no fim da pista fumando e olhando o céu. Não demorou para que entendêssemos porque. O som começou como um zumbido, longe e se aproximando. Parece que ouvimos antes deles a chegada do avião. Só quando o aparelho já se mostrava no alto do início da pista é que eles se levantaram e colocaram-se à espera.

O piloto vez exatamente igual ao que fizera da primeira vez, um pouso duro com o avião quicando na piçarra, depois indo até o final da pista, dando meia volta e parando. Desceram três homens que conversaram rapidamente com os outros três. Os que vieram do mato entraram no avião e os que chegaram agora se meteram na floresta.

Como chegou, o avião se foi, rápido e barulhento. A poeira logo assentou, sinal de que vinha chuva, e tudo voltou à calma de antes.

Quando saímos do mato, os homens e mulheres da aldeia começavam a chegar. Não viram o que havia acontecido, apenas o rabo do avião sumindo na primeira nuvem baixa.

Na aldeia os velhos nos pediram que contássemos o que acontecera em volta do fogo no barracão. Nas palhas os primeiros pingos grossos da chuva que demorou três dias e três noites.

Na manhã do quarto dia chegaram os dois helicópteros verdes com soldados e médicos. Nos traziam remédios amargos e a alegria da barulheira dos motores.

Na hora de comer, dois médicos e um outro homem que trazia umas estrelas douradas na camisa comeram com nossos velhos, como sempre faziam, enquanto os soldados e outros médicos se reuniam numa barraca de pano que eles montavam à beira da pista e com uma cozinha com panelas de ferro e lenha. Tiravam a comida de latas e vidros que depois deixavam jogados por ali. Nós recolhíamos tudo e enterrávamos desde o dia em que eu e mais dois meninos nos ferimos enquanto brincávamos com aquilo.

Na palhoça onde os velhos comiam todos os dias, a conversa não foi tão solta e divertida como sempre. Percebíamos que nossos idosos contavam aos militares sobre a chegada dos estrangeiros e o sumiço dos nossos rapazes. Os homens do Exército assumiram um ar sério e disseram que comunicariam os seus chefes daquilo. Prometiam mandar gente e fazer uma busca.

Não adiantou a recomendação de que poderia haver boiúna do lado de lá, que soldados poderiam também ser engolidos. O homem de verde e estrelas douradas disse que não se preocupassem, os soldados estariam preparados.

Terminado o dia, os helicópteros de volta ao seu lugar, tudo voltou ao normal, até que depois do almoço do dia seguinte ouvimos de novo o barulho do avião dos homens do meio do mato. Corremos para nosso esconderijo sob as árvores e esperamos a aterrissagem, mas isso não aconteceu. O avião passou baixinho sobre a pista, só que de atravessado, e sumiu sobre as árvores na direção em que os homens haviam entrado na floresta. Não demorou, novo sobrevoo na mesma direção. De primeira nós achamos que era outro avião seguindo o primeiro, depois vimos que era o mesmo que deveria ter dado a volta na mata e voltado pelo mesmo canto, só que voando mais alto. Antes dele sumir na lonjura, ainda vimos cair alguma coisa de dentro dele. Será que algum homem tinha se jogado do avião em voo?

Dessa vez os adultos chegaram a tempo e viram o ocorrido. Um deles disse que os homens de dentro do avião haviam jogado comida ou redes para os que estavam no chão. Kaloré confirmou que era justamente daqueles lados que estava o acampamento dos homens, às margens do igarapé, onde eles haviam construído um tapiri e faziam canoa. A curiosidade de ir lá ver o que estava acontecendo era grande, mas o alerta para a possibilidade de cobra-grande e a proibição dos idosos, além do medo inconfessável, eram freio. Talvez os soldados com suas espingardas de muitos tiros, quando viessem, conseguissem matar a cobra grande e contar o que está havendo da tapera dos estrangeiros.

No segundo dia chegaram três helicópteros cheios de soldados amados. Não vinham em visita de cortesia e nem adentraram a aldeia. Dirigiram-se apressados em duas filas para a picada aberta pelos homens do teco-teco. Aos poucos, em silêncio, comunicando-se por gestos, os soldados eram engolidos pela escuridão do verde. Ficaram dois homens em cada helicóptero, os pilotos. Um daqueles homens louros que vinham de vez em quando me ensinou a contar até vinte. Eu contei vinte soldados, aí comecei a contar de novo e contei mais seis soldados e mais os seis pilotos. Nunca tinham vindo tantos de uma vez.

Nossos homens, mulheres, velhos e crianças ficaram amontoados na saída da aldeia, os trabalhos parados, caça moqueando sozinha, mandioca azedando, bananas sem vigias para os macacos. Todos esperando o resultado daquela ação. O silêncio cortado apenas pelo farfalhar que vinha da matas, um piado ou outro ou o grito de macaco afoito. Mas esse silêncio foi rompido pelo leve zunido, longínquo. Nossos ouvidos diziam que era o avião dos homens da floresta. Os pilotos vistoriavam suas máquinas sob os capacetes enormes e não ouviam o que nós ouvíamos.

Olhávamos alternadamente para os pilotos e para o céu na esperança que eles vissem ou ouvissem o que já ouvíamos, mas eles não demonstravam qualquer reação ao zunido. Não agüentando a surdez dos pilotos, Itaji saiu correndo e gritando “eles vêm chegando! Eles vêm chegando!”. O piloto mais próximo, pego de surpresa, virou-se assustado já sacando a pistola. Itaji, que tinha certeza que os primeiros homens do avião haviam matado seu filho Andirá, mesmo que os idosos dissessem que não, via nos soldados a oportunidade de matar os invasores e saber que fim deram ao seu filho.

Vendo tratar-se de uma mulher desarmada, o piloto guardou a arma, os outros cinco já se aproximavam. Antes que perguntassem a Itaji quem vinha vindo, o avião despontou sobre nossas cabeças, vindo da mesma direção dos dois últimos voos.

O piloto soltou Itaji e correu para seu helicóptero, um segundo piloto sentou na frente junto com ele e um terceiro sentou no banco de trás, segurando a espingarda de muitos tiros fixa por um pé de ferro. A hélice de cima foi ligada, Itaji voltou com medo de ser cortada, gritando “peguem eles! Peguem eles! Eles mataram Andirá!”. Diferentemente das outras vezes, o helicóptero levantou rápido, não na vertical, mas já na direção de por onde sumira o aviãozinho. Desapareceram os dois, deixando o ruído que se afastava rápido.

Apagou-se o som dos motores, surgiram sons de estalos lá no meio do mato. Sons estranhos como troncos quebrando... Não. Como estalar de dentes de anta... Não exatamente. Sons rápidos, tum, tum, tum, como batidas compassadas em tambor. Muitos tambores, muitos barulhos numa sequência que lembrava o matraquear de macacos no cio.

Assustados, nos enfiamos nos matos, subimos em árvores, escondemos as mulheres e os velhos na vegetação. Desaparecemos como queixada ao ver pintada, rápido, sem ruído e sem rastro. Ficamos imóveis em nossos esconderijos esperando o matraquear parar.

Parou, mas não nos movemos. Os pilotos voltaram para seus lugares atrás dos vidros, tão apreensivos quanto nós, olhos fixos na entrada da picada. Falavam-se por meio dos rádios em seus capacetes, como o Holanda, soldado que sempre vinha com os médicos, havia me mostrado. De longe víamos seus lábios movendo-se. Suas mãos estavam segurando aquelas marchas como eles sempre seguravam para dirigir o helicóptero. Nos perguntávamos se eles voariam deixando os outros na mata como fizera o teco-teco com os outros homens, mas eles não ligavam os motores.

O tempo passava e nada acontecia. Os pilotos, lentamente, largavam os comandos, desamarravam-se das cadeiras, desciam dos helicópteros, mostravam tranquilidade, faziam uma rodinha de conversa, acendiam seus cigarros. A tranquilidade deles nos deu tranquilidade. Aos poucos fomos saindo de nossas locas. Mas não voltamos para a aldeia entregue às mutucas. Nos reagrupamos à sombra das árvores à margem da pista.

Foi muito tempo ali vendo o nada passar diante de nós. Já começávamos a nos inquietas e pensar em voltar a nossos afazeres, talvez nos banhar no rio, quando surgiram os primeiros soldados saindo do caminho. Os da frente traziam as mochilas dos estrangeiros, os outros vinham trazendo outras bugingangas: espingardas, fogareiro, terçados, sacos, panelas... Doze soldados, dispostos quatro a quatro, traziam sacos pretos enormes, com algo dentro, parecia caça. Pelo tamanho talvez fosse sucuri, ou onça, talvez anta ou capivara... Não tinha como saber.

Contei os soldados, nenhum ficara por lá. Os quatro últimos traziam uma espécie de rede com paus do lado. Tinha alguém deitado naquela rede de pano branco que, à distância, não distinguíamos quem era. Do meio do nosso grupo saiu Juacema gritando o nome do filho “Iraputã! Iraputã!”, corria com os braços abertos em direção ao homem deitado na rede.

Os soldados reuniram entre os helicópteros o que trouxeram do acampamento dos três homens. Nossos velhos se aproximaram para saber do que se tratava. Aquele que parecia ser o chefe dos soldados abria os sacos e mostrava outros sacos, só que de uma espécie de vidro que dava pra dobrar, cheio de farinha. Mas não era farinha, dizia o chefe dos soldados, era uma farinha feita de folha de epadú que matava e que era proibida. Aqueles homens recebiam aquela farinha do avião que atirava em pacotes na mata, depois transportavam de canoa rio Uapés abaixo até Barcelos, uma aldeia lá deles, os soldados e os estrangeiros.

Depois o homem abriu os sacos pretos. Dentro estavam os três homens que desceram por último do teco-teco, mas que os adultos não haviam visto, por isso fomos chamados, as crianças, para confirmarmos se eram eles mesmos. Eram. Estavam mortos com os olhos abertos.

Os soldados foram subindo no helicóptero e colocando as coisas catadas no acampamento dos homens da farinha que mata. Arrumaram os sacos com os homens dentro, um em cima do outro, em um dos helicópteros. Já carregado de tralhas e soldados, o helicóptero foi embora. Os demais homens ficaram esperando voltar o helicóptero que saíra atrás do aviãozinho.

As atenções nossas estavam divididas. Mulheres e velhos foram cuidar de Iraputã e assuntar sobre o paradeiro de Andirá e Xambré; os jovens e crianças espiavam a arrumação dos soldados.

Já era tarde, quase noite, quando o terceiro helicóptero voltou. O piloto desceu e nós o ouvimos falar para o chefe deles que não tinha combustível para seguir ainda hoje, que ficaria ali aguardando ajuda. Não foi embora e nenhum mais foi. Ficaram todos. Montaram suas cabanas de pano verde, improvisaram uma cozinha e acamparam ali.

Nós fomos levados à força por nossas mães para também dormirmos, não tinha porque ficarmos acordados a noite inteira.

Porque fomos dormir tarde, não consegui acordar cedo. Despertei com o barulho do motor dos helicópteros se preparando para irem embora. Saltei da rede já correndo e disparei pelo caminho até a pista de pouso. Por pouco não perdi o espetáculo da decolagem. Os soldados subiam, alguns acenavam com a mão, outros faziam cara de mau. Levavam suas barracas e deixavam suas latas e garrafas para enterrarmos.

Eles sumiram no horizonte e oito dos nossos rapazes se internavam na floresta pelo caminho que levava ao esconderijo dos bandidos. Iraputã, mesmo com poucas forças por ter ficado amarrado por tanto tempo e fazendo trabalho pesado enquanto recebia açoites, acompanhava o grupo, os guiaria até o local onde foram enterrados os dois companheiros de aventura.



Marcos Pontes
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domingo, 5 de abril de 2009

Comércio no Pelô

Bându e Bêngue nasceram no mesmo dia no mesmo cortiço na ladeira do Pelourinho.Os pais de Bându, Leôndia e Lucivaldo, eram lavadeira e guarda noturno; os pais de Bêngue, Carmêndia e Clodimir, eram empregada doméstica e apontador do jogo do bicho.Infância feliz tanto quanto a pobreza permitia. Baba nas ladeiras, um ou outro dólar de turista desavisado que arriscava um passeio pelo sítio histórico.Os serviços da casa saiam de graça ou na base do escambo. O eletricista, o encanador, o carpinteiro, a costureira... Todos vizinhos, compadres e amigos, quando não, irmãos. Se não havia perspectiva de riqueza, havia o conforto da casa própria e a solidariedade entre pobres iguais.Bêngue e Bându desde pequenos freqüentavam o Colégio Central com suas calças curtas de tergal e a camisa branca sempre engomadinha por mãinha Leôndia.Rapazinhos, carregavam caixas e mercadorias no Mercado Modelo e estudavam à noite no Central cada vez mais decaído.O governo, de olho grande nos visitantes estrangeiros, desapropriou os casarões e casinhas, expulsou os moradores para o subúrbio longínquo e rifou os imóveis entre seus amigos. A vendedora de acarajé, amiga de artistas famosos, ganhou um restaurante e virou estrela nacional; o sobrinho do deputado da situação que morava na Barra, ganhou o sobrado e montou um bar; o sapateiro, sem padrinhos importantes, foi afastado para um casebre na Federação.Lucivaldo e Clodimir, sem amigos influentes, preferiram voltar para Feira de Santana. Bându e Bêngue, já maiores de idade, ganhando seu próprio sustento, embora pouco, suficiente, viraram garçom e guia turístico no próprio Pelourinho.Iluminaram as ruas, pintaram as fachadas, fizeram propaganda na tevê e no exterior e os turistas apareceram em hordas. O policiamento eficaz inibiu os roubos e assaltos. Mais seguro cobrar caro no coco, no abará e na cerveja.Insatisfeitos com seus salários no lugar onde corriam euros a rodo, Bêngue e Bându partiram para o comércio seguro e protegido pela lei, o tráfico de drogas.



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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Ermitão

Acordava à hora que lhe conviesse, tomava banho ou não dependendo de o tempo estar quente ou frio e sua disposição permitir que o fizesse; podia comer um desjejum ou almoçar uma feijoada, o apetite e a vontade determinavam o cardápio fosse a hora que fosse. Desde adolescente Demerval desejava viver assim e seu sonho pôde tornar-se real com a morte dos pais durante uma pescaria no Pantanal.

Refeito da surpresa e dar dor da perda, permitiu-se conviver com a saudade na solidão e na liberdade com que sempre sonhara. A fortuna herdada foi aplicada em vários fundos e ações que ele administrava pela internet. Por meio da rede, fazia compras e pagava contas, estudava, passeava, mas evitava se comunicar com quem fosse e não lia jornais, assistia a filmes ou ouvia músicas. Tentava comprovar sua teoria de que poderiam haver ermitões urbanos no século 21.

Não saber o que acontecia no mundo, não ouvir as melodias e suas letras que já condenava pela pobreza poética antes do isolamento, não se preocupar com as modas e suas mortes aceleradas em nome da modernização social e da fortuna de quem diz o que cada cidadão tem que vestir, ouvir e pensar era o princípio de seu afastamento e a dita liberdade.

Trancou-se no apartamento depois de fazer um isolamento acústico para evitar os ruídos da metrópole. Na porta da frente, uma portinhola por onde seriam passadas as compras que faria à distância, além das contas de consumo de água, luz, gás, internet e condomínio, todas pagas em débito automático. Havia se livrado de qualquer contato direto com qualquer ser humano.

Não havia relógios, mesmo no computador. Nunca sabia se era dia ou noite, isso o permitia dormir, acordar e comer quando bem entendesse, sem os compromissos cronológicos incutidos em seu relógio biológico desde a mais primeira idade, quando lhe diziam a hora em que deveria mamar ou dormir. Ele ditava suas regras e a única era não ter regras.

Bem tentou desprender-se de outros hábitos oriundos da educação tradicional que tivera e que questionara na juventude. Barbear-se, aparar as unhas, cortar cabelos, tomar banho, lavar louça... O homem não precisava dessas coisas em seus primórdios, não eram, portanto, funções naturais, mas invencionices em nome do progresso, do bem estar e outras baboseiras que negava.

Por algum tempo – ainda tinha incutida nos instintos a noção de tempo -, algo em torno de dois meses, manteve-se sujo, barba crescendo e o apartamento transformando-se num chiqueiro humano. Entendeu na prática as necessidades da higiene. Não estava se suportando ou ao local, percebeu que adoeceria ou os entulhos tomariam o espaço que deveria ser seu.

Faxinou-se e ao apartamento, dezenas de sacos e caixas despejados no corredor pela portinhola e muitos produtos de higiene pessoal e ambiental no sentido inverso, trazidos pelos entregadores do supermercado.

Gripou. Remédios deixados na portinhola pelo entregador da farmácia.

Recebeu pela portinhola cartões de Natal e aniversário e o comunicado da morte da tia Enalva. Respondeu a todos com flores on-line.

Dedicava-se a estudar filosofia. Escarafunchava sites e comprava livros. Aos poucos foi criando coragem de escrever os próprios textos aplaudindo ou desancando pensadores antigos e modernos. Veio a necessidade de mostrá-los e criou seu blog, sem sistema de comentários. Lia, escrevia e blogava. Tornara-se um produtor em grande escala de textos sobre a natureza humana como a vira antes e da qual se esquecia aos poucos.

Escrever sobre algo que não mais conhecia tornava-se um incômodo gradativo. Ele próprio não era mais referência de ser humano, tornara-se exemplar descartado. Seu nome, Demerval, já não fazia sentido. Se o nome é o primeiro diferencial de um ser humano dos outros seres humanos, de quem ele se diferenciava se era único? O que poderia falar de desejos, frustrações, perdas, amores, ódios se, sabe-se lá há quantos anos, não sentia nada disso? Seria válido escrever sobre o luto ou a alegria do parto se era apenas um teórico afastado de seu objeto?

Doloroso reconhecer que estava enganado desde os quatorze anos, embora pudesse ser reconhecida sua grandeza de espírito justamente por admitir o erro. Esteve tangenciando a depressão. Nenhum alento lhe traziam Sartre, Platão, Kant, Demócrito. Prazer algum lhe traziam Berkeley, Rousseau, Spinoza, Hegel e Schelling. Não conseguia criar, especular sobre a alma ou sua ausência, se achava o mais desautorizado homem a falar dos homens.

As janelas antirruídos e as paredes acolchoadas não evitavam a entrada dos trovões repetidos e fortes. As paredes e os móveis tremiam seguindo o ribombar que soava após outro e outro e mais um. Demerval lembrava-se vagamente do cheiro da chuva, seu tato tinha vaga memória da lama sob os pés, os olhos guardavam algo do brilho das gotas iguais e diferentes das que viam no chuveiro. Algo lhe recordava serem aqueles ruídos os sinais de temporal. Por dentro ele era tempestade.

Veio a vontade de rever as águas caírem e o medo de rever o mundo. Olhava os cabelos brancos no espelho que a mãe um dia fixara na parede oposta à Última Ceia e se perguntava como envelhecera sem perceber. Suas certezas foram pelo ralo com o último banho, não havia mais razão para esconder-se do mundo do qual, agora não tinha como negar, jamais estivera ausente. Engolia o orgulho que já não tinha razão de ser e só agora percebia ter sido o autor da sandice de jogar a vida fora em troca de filosofia barata produzida mais por teimosia do que por curiosidade científica ou comprovação indubitável de suas teses.

Assumiria diante do mundo que o desconhecia a derrota que se lhe dera. Vestiu-se com o esmero que suas roupas descoloridas permitiam, empertigou-se com o resto de amor próprio, abriu a porta do apartamento. Encontrou o corredor escuro. Nenhum ruído além dos trovões e pingos nas vidraças.

Apertou o botão do elevador, mas esse não acendeu. Estava morto. Talvez a tempestade tenha provocado um black-out. Desceria os doze andares pela escada.

A cada andar, o silêncio se repetia. Aquelas crianças que costumavam correr pelos corredores hoje seriam adultos e adultos não gritam por brincadeiras sérias, só por bobagens de adultos. Não perdera o vício de analisar os homens, mesmo sabendo-se errado em suas conclusões.

Descia imaginando quem encontraria dos velhos conhecidos, como a cidade havia crescido, embora já fosse gigantesca, como seria recebido pelo mundo que crescera sem ele.

A cada andar, mais escuro. Mais silêncio. Menos trovões. Quase nenhum ruído de chuva.

No térreo respirou fundo, abriu a porta que dava para o saguão do edifício e entrou tentando esconder o medo. Ninguém. Nenhum ruído humano, nenhuma luz. Apenas escuro e frio. Dirigiu-se à rua.

Na escuridão que se espalhava junto com a água e os relâmpagos, pôde ver o perfil dos edifícios onde antes haviam casas. Os postes apagados, nenhum carro, nenhuma alma viva ou mesmo fantasma. Estava só no deserto escondido pelo cobertor negro. Tentava rememorar os caminhos do bairro. Se não se enganava, na segunda esquina à direita veria a praça. A praça estava ali, mas não as árvores. Nos flashs da tempestade via troncos nus. Se a memória estava certa, do outro lado da praça estava o hospital público sempre com filas enormes, gente chorando, gemendo, reclamando, sofrendo, mas gente. O hospital estava lá, mas sem macas ocupadas, atendentes, pacientes, choros, gemidos ou gritos. Silêncio e frio.

No meio da praça o relógio marcava 6. Se fosse dia, estaria escurecendo, se fosse noite estaria clareando, mas era tudo escuro e o relógio funcionava. Estaria certo?

Onde mais ir? Ao metrô!

A escada rolante não rolava e o elevador não elevava nem baixava. Desceu as escadas tateando e onde sempre havia luz, nada havia, nem mesmo a luz. Silêncio e um ou outro pedaço de luz de relâmpago de vez em quando. Silêncio absoluto daqueles de doer os ouvidos e enlouquecer quem o ouve.

Andou por toda a noite que não acabava. Em uma lanchonete escancarada encontrou água e saquinhos de salgados. Na farmácia deserta, remédio para aliviar a cabeça que doía confusa. Na sapataria, tênis mais confortáveis e secos. Andou no frio breu até encontrar um hotel com camas limpas e postas, sem usuários. Descansou por horas, acordou ainda escuro e chuvoso, andou mais e mais. O tempo passava e o sol não vinha. Comia o que encontrava pelos bares, bebia, descansava e caminhava. Gritava pelas ruas, quebrava vitrines na esperança de ver policiais, só o eco respondia, quando havia eco.

Tornara-se o ermitão que sonhara poder ser sem ter com quem discutir suas teorias.

©Marcos Pontes

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segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Passado é Coisa do Passado

- Amor, olha essa foto.
- Onde foi isso?
- Não lembra?
- Não.
- Amor! Foi naquela excursão à serra gaúcha!
- Ah... Quando foi isso?
- Não acredito! Tá tirando com minha cara?
- Que é isso, meu bem? Eu não lembro, só isso.
- Nosso primeiro ano de casamento, Astrogildo. Como pode esquecer isso?
- Se estamos no sétimo, é lógico que tivemos o primeiro, mas também tivemos mais seis. E foram muito bons, não foram?
- Vai me dizer que não se lembra disso também...
- Ora, amor...
- Lembra onde comemoramos o segundo?
- Fortaleza?
- Fortaleza? Esse foi o quarto!
- Chapada Diamantina.
- Nunca fomos à Chapada Diamantina! Tá louco?
- Ih! Então, não lembro.
- Manaus, Astrogildo! Manaus!
- Ah, foi...
- Vai dizer que não lembra...
- Lembro de um calor de sauna e muita água.
- E fomos com quem?
- Com o Clodoaldo?
- Clodoaldo? Que mané Clodoaldo?
- Ah, é! Não te apresentei o Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Quem é Clodoaldo?
- Sei lá! Você que falou nesse tal Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Você tá bêbado, Astrogildo? Quem é Clodoaldo?
- Sabedeus. Não conheço nenhum Clodoaldo, Suméria.
- E como é que você perguntou se fomos a Manaus com o Clodoaldo?
- Chutei, ué.
- Eu tô casada há sete anos com um maluco e não sabia.
- Com quem fomos a Manaus em nosso terceiro aniversário?
- Segundo!
- Segundo? Quem é segundo?
- Segundo aniversário, desgraçado!
- O que tem o segundo aniversário?
- Nós fomos a Manaus com o Clécio e a Vilda em nosso segundo aniversário de casamento, seu beócio.
- Ah, foi!
- “Ah, foi!”, “ah!, foi”... Você não lembra, confessa.
- Não lembro mesmo.
- Como é que você não lembra coisas tão importantes que nos aconteceram, seu maldito?
- Porque eu penso nos muitos anos que ainda vamos viver felizes. Porque vejo nosso amor em perspectiva e não em retrospectiva.
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Como Era Bom

Como era bom o tempo em que tudo rescindia a jasmim, em que , para tudo, o amor bastava, que o leve toque das mãos afagava a alma e consolava o espírito.



Não havia problema que a troca de olhares cúmplices não resolvesse. Nós tínhamos um ao outro e planos para ambos, para os chicos que se chamariam Cleoneide e Cleovaldo, para nossa casinha na COHAB, para nosso casamento na Igreja Petangular do Saquinho de Trinta Moedas de Judas, para nossa lua-de-mel em Cabrobó... Tínhamos todos os sonhos passeando sobre nossas cabeças, sonhos tão fortes que eram quase palpáveis.



Como eram lindos aqueles tempos...



Você e eu passeando à tardinha na praça da matriz, mãos dadas, sorrisos abertos, causando inveja aos outros casais, tão felizes nós éramos. A gente acordando cedinho no sábado para encontrarmos as frutas e verduras fresquinhas na feira. O caldo de cana com pastel de queijo com gostinho de bom dia e, depois, o dia inteiro juntinhos, fazendo tudo a dois, sonhando e vivendo em comunhão.



Eu bem disse que essa coisa de micareta é coisa do Cramunhão, mas você insistiu em ir e eu cedi. Não deveria ter cedido. Deveríamos ter ido para o retiro da igreja, mas você teimou tanto e eu não conseguia não fazer seus gostos, era meu maior prazer.



No meio de tanta gente seus olhos tinham que encontrar os olhos verdes do Satanás daquela piranha da Doricélia, né, cachorro? Suas mãos descaradas tinham que roçar nas coxas da Doricélia, né, safado? A vagabunda da Doricélia tinha que ficar esfregando aquele bundão dela nas tuas coisas, né safado?



Pois você fique com a Doricélia, filho de uma vaca de três tetas! Amanhã mesmo vou procurar um advogado e vou te deixar sem nada! Ou você acha que eu vou sustentar os dois moleques sozinha? E nem adianta me pedir arrego que eu não dou. Vá para a feira agora com a biscate da Doricélia, se quiser, seu garanhão de brega.



E fique sempre muito mal!



Fartileide.

Rapel

Atanagildo havia aceitado o convite de Siderlene, sua musa das noites mal dormidas, para fazer rapel. Domingo, cedinho, a garota o pegou em casa e partiram para o campo. No carro de Siderlene iam mais duas amigas e todas aquelas tralhas de cordas e mosquetões.

Aos poucos, enquanto despertava de vez, Atanagildo começa a tomar consciência da besteira que fizera. Para impressionar a garota, amante da vida ao ar livre e de esportes radicais, e sob o efeito de duas doses de uísque aceitara o convite sem ter-se questionado se seria capaz de realizar tal tarefa. Estava percebendo sua acrofobia adormecida acordar.

Garoto do interior, onde os prédios mais altos não passavam de sobrados de dois andares, Atanagildo lembrava agora do dia em que fora visitar o primo, morador do décimo primeiro andar de um prédio na Barra, em Salvador. Impressionado com a vista que se tinha do mar, saiu para a varanda. Lembrava agora como se agora estivesse vivendo aquilo, do frio que sentiu percorrer o espinhaço, da vertigem, da sudorese quando olhou para baixo e viu a avenida com seus carrinhos de brinquedo, de como teve que segurar-se com força no parapeito da varanda para não desmaiar, de como gritava histérico e de como o primo teve que conduzi-lo de volta para dentro do apartamento.

De volta à realidade, perguntava-se por que fora tão covarde a ponto de não admitir seu medo de altura. Ela entenderia, saberia que não é uma coisa consciente, mas, não, o bobão tinha que topar o convite e se via dentro de um carro, com três lindas e aventureiras garotas, tendo a certeza que estaria sendo motivo de piedade e chacota dentro de uma hora.

Meia hora de subida por uma estrada de terra sinuosa, por entre árvores e pastos, chegaram ao platô onde já havia uma pequena multidão os esperando. Naquele ambiente em que se era possível sentir não só o cheiro, mas uma névoa de adrenalina, a adrenalina de Atanagildo empestava o ambiente e sua cueca.

Um bonitão com cara de super-herói de quadrinhos convocou os novatos para as instruções sobre o uso do equipamento e as medidas de segurança.

Atanagildo ficou um pouquinho aliviado ao perceber que, além dele, haviam mais doze novatos. Entre tantos poderia se esconder melhor e, talvez, passar desapercebido.

Tudo ia bem enquanto as instruções não passavam de nós, cordas, grampos, posição, como segurar a corda, o que evitar fazer e coisas tais. O instrutor instruía e Atanagildo fazia caras e bocas, demonstrando que entendia tudinho, que não teria dificuldade em praticar. Uma segurança de faz de conta.

Aos poucos começaram as descidas numa seqüência acordada entre os veteranos. Descia um antigo, depois um novato e assim se sucederiam. Um veterano, um novato, um veterano, um novato... Cavalheirescamente, Atanagildo ofereceu-se para ser o último. Para os outros foi uma atitude simpática, para ele foi um tempo a mais para pensar o que fazer para não descer. Chegar à beira do precipício estava totalmente fora de cogitação.

Siderlene foi a quarta veterana. Vendo-se sem os olhares de simpatia e admiração da amiga, sem ter pensado em nenhuma saída honrosa, Atanagildo embrenhou-se na mata e levou três dias de caminhada para cobrir os sessenta quilômetros, evitando estradas e humanos, até sua casa, de onde não sai há um mês.