domingo, 21 de junho de 2009

Maloca Descoberta

Era um acontecimento festivo quando algum teco-teco ou helicóptero pousava naquela pista de piçarra cercada de mato. A molecada do povoado chegava ao campo antes do aparelho, avisada pelo barulho longínquo do motor, fácil de ser ouvido naquele silêncio espesso da floresta.

Em algumas das viagens os passageiros eram cientistas que se embrenhavam na floresta cheios de tralhas esquisitas, mochilas, redes de dormir e de pescar, fogareiros, armadilhas e uns troços que não conseguíamos identificar o que era ou pra que serviam. Vinham sempre acompanhados de um ou dois índios ou por um mateiro experiente.

Outras vezes, no lugar dos cientistas, vinham uns homens louros com suas calças pretas de tecido fino, gravatas vermelhas, camisas brancas de mangas curtas, sapatos lustrados e um livro preto que apresentavam como o livro da salvação das almas. Reuniam-se com os idosos e conversavam coisas ininteligíveis num português enrolado. As crianças os cercavam assuntando o que era dito ou gritado aos olhos fechados e seguido de aleluias e graças a Deus e outras coisas sem sentido como complementos das frases interrompidas.

De helicópteros vinham soldados e médicos, normalmente na manhã seguinte ou na seguinte à seguinte à Lua cheia. Os soldados sem fuzis ajudavam a consertar telhados e paredes, pintavam as paredes do barracão comunitário, colhiam palha para recobrir as palhoças ou ajudavam a reparar os cascos das canoas. Os médicos usavam um aparelho de três pontas e nome esquisito. Duas pontas eram enfiadas no ouvido lá dele e a terceira, com uma rodela preta, encostavam no peito das pessoas, ou nas costas, e mandavam respirar fundo. Mandavam abrir a boca e mostrar a língua dizendo “aaaaa”. Faziam umas perguntas estranhas para as mães: “como são as fezes do bebê?”, “ele tosse à noite?”, “a menina reclama de dor de cabeça?”, “quantos dedos você está vendo?”. Ser doutor é fazer isso? Coisa mais besta!

Depois davam pílulas, vidros de beberagem azeda e obrigavam os mais velhos a nos darem outra dose à noitinha, antes de irmos para a rede. Pior quando enfiavam agulhas na bunda ou no braço e empurravam para dentro da gente uma água de dentro de tubos de vidro. Diziam que era remédio, como se já não tivéssemos remédios para tudo no meio do mato.

Mesmo sabendo que íamos sofrer a tortura de ouvir gente gritando coisas que não entendíamos ou seríamos obrigados a engolir alguma coisa amarga ou espetados por agulhas, não resistíamos à tentação de vermos aquelas máquinas barulhentas descerem como se fossem se espatifar no solo, depois deslizarem levantando poeira, ou os helicópteros abrindo um redemoinho de pó vermelho no meio do mato, descer devagarzinho como se fosse um beija-flor rajado. Era diversão para quebrar a rotina.

Um dia ouvimos o barulho ainda longe, corremos para a pista. Podíamos estar enganados, mas não era dia de vir nem médico, nem louro alto e nem cientistas, se bem que os cientistas não tinham uma programação certinha. O barulho também era diferente, não parecia o barulho dos dois motores do avião dos cientistas ou o motor mais fraquinho dos homem da bíblia, muito menos o dos helicópteros.

Nós todos ladeando a pista quando vemos um avião de apenas um motor aparecer acima das árvores. Balança de um lado para o outro, embica em direção à pista, vem meio de lado como gavião na ventania. Não era azul como o dos moços louros e nem verde como o dos cientistas, tinha listras verdes no rabo e nas asas. O piloto também parecia mais estabanado. A roda bateu com força no chão, quicou, pisou de novo com força e logo começou a frear, não era aquele pouso longo e suave que a gente estava acostumado.

O piloto não manobrou para a frente do barracão, como os outro faziam, foi lá para o fim da pista, longe da gente. Ficamos parados esperando ele voltar, mas ele não voltou. De longe vimos descerem três homens que começaram a tirar as coisas da barriga do bicho, cada um deles com uma espingarda na bandoleira. Ficamos olhando um para a cara do outro esperando que alguém tomasse a iniciativa de correr até lá e saber as novidades. Não sei quem foi o primeiro, quando vi já tinham três correndo à minha frente e eu os segui.

Já estávamos no meio da pista quando vimos o avião dar a volta, apontar o nariz na direção da gente e começar a girar as hélices com força, como faz quando vai decolar. O piloto não devia estar nos vendo, acelerou com tudo em nossa direção. Mal tivemos tempo de nos jogar de lado, gritando feito bando de macacos que vêem onça. Tirando os arranhões do peito e nos cotovelos, ninguém se machucou.

Sem entender o que havia acontecido, passamos algum tempo olhando uns para as caras abestalhadas dos outros, cada qual contando para onde correra para se livrar de ser estraçalhado pelo teco-teco. Os pais vinham correndo ao nosso encontro, as mães gritando, até uns gritos de “aleluia!” eu ouvi.

Um dos nossos jovens adultos, mais calmos os ânimos, perguntou para onde foram os três homens desembarcados. Nos viramos todos em direção ao final da pista onde os víramos pela última vez. Haviam se embrenhado.

De volta às casas, um ar pesado, cada um especulando o que fora aquilo sem qualquer teoria definitiva, quando um dos mais velhos chamou três homens mais novos, dois solteiros e um casado, e os mandou ir atrás dos homens embrenhados na floresta para saberem o que estava acontecendo.

Não havia arma de fogo na aldeia, nossos homens caçavam e pescavam com zagaia e arco e flecha, usavam facão que os soldados trouxeram de presente e não tínhamos inimigos. Os moradores das aldeias vizinhas eram nossos amigos e costumávamos trocar carne, mandioca, farinha, peles, o que a floresta nos desse a mais. Não tínhamos necessidade de espingarda ou revólver. Além do mais, não tínhamos porque desconfiar das intenções daqueles homens, talvez não tenham nos visto, talvez tivessem pressa para ajudar algum cientista perdido na mata. Nós vimos os cientistas e soldados falarem com gente longe por meio de rádios. Talvez aqueles homens tenham falado com os cientistas que estavam havia dias na floresta e eles precisassem de ajuda. Se fosse assim, nós poderíamos ajudar.

Os homens saíram depois de comer. O sol estava no alto. Fomos atrás deles, eu e mais oito garotos, até a beira da pista. Os vimos dirigirem-se para o lugar onde os três homens de espingardas e mochilas desceram do avião. Vimos Andirá se acocorar e identificar o caminho dos estrangeiros. Apontou para uma pequena abertura no mato e seguiram os três dos nossos por ali.

Ainda ficamos um tempo especulando e aguardando, mas sabíamos que poderia demorar a volta dos homens. A espera foi ficando sem graça. Voltamos para a aldeia e para as brincadeiras.

Na boca da noite, como quase todos os dias, os adultos acenderam a fogueira na praça, sentaram-se em troncos e puseram-se a conversar. Estavam todos lá, entre nós os pais dos dois rapazes solteiros e a mulher do casado que foram atrás de notícias dos estrangeiros. Naquela noite não ouvimos estórias engraçadas e nem planos para o dia seguinte. Era muito silêncio só quebrado muito raramente por uma ou outra especulação sobre a demora do trio. Para nós, crianças, a noite não estava agradável. Naquele silêncio, o sono não demorou, fomos nos retirando aos poucos.

Acordei na manhã seguinte com o alvoroço vindo do barracão. O vozerio dos homens assustava mesmo sem entender o que diziam à distância. Saltei da rede num salto e corri até lá. O Sol ainda nem havia se levantado. Fui parado no caminho pela minha mãe. Ninguém pode entrar lá, me disse, é reunião só para os homens. Me virando, reparei que todas as mulheres estavam à porta de suas palhoças, algumas com bebês no colo, outras com ar de preocupação nos olhos, as mães de Andirá, Iraputã e Xambré formavam um grupo separado, conversando agitadas, tensas.

O vozerio dos homens e as conversas das mulheres eram em nossa língua nativa, que nós, crianças, sabíamos muito pouco. Não sei por que, mas de uns tempos para cá os adultos nos obrigavam a falar em português. Nossa língua se tornara um segredo só conhecido pelos mais velhos. Só entendíamos uma ou outra palavra, “floresta”, “armas”, “perigo”, “forasteiros”, perdidas no meio de expressões inteiras.

De repente o silêncio e uma cantoria masculina, solene, séria, em nheengatu. Uma cantiga antiga, dos tempos de nossos ancestrais, que falava de coragem e apoio que cada um de nós tem que dar ao outro.

Não demorou muito a cantoria. Cessou num ato, seguindo o silêncio, a saída de Mariú, Kaloré e Irajá, caras pintadas, borduna, arco, flecha e facão, à frente dos demais homens. O cortejo seguiu em direção à pista de pouso, nenhuma palavra, apenas o roçar de seus pés na terra nua. Tentei acompanhá-los, mas fui detido novamente pelas mãos da minha mãe. Os homens sumiram por trás da última casa para reaparecerem pouco depois sem os três paramentados.

O dia foi todo de tensão. Pouco se falava, apenas o essencial. As mulheres faziam suas tarefas de preparar a comida, serviam às famílias, depois sumiam para se reunirem com as mulheres das famílias dos seis homens que se encontravam em missão. Os homens comiam e voltavam para o barracão onde pitavam cachimbo e conversavam em voz baixa.

Mesmo as crianças que pouco entendiam o que se passava, entendiam que não era dia de brincar. Até tentamos nadar ou pegar algum peixe com as mãos, mas o espírito desanimador dos adultos nos contagiou. Preferimos compartilhar com eles a apreensão e a preocupação pelo sumiço dos seis homens.

Já o sol começava a despejar-se sobre as copas quando ouvimos um grito longínquo, depois outro e mais outro. Era Kaloré avisando da chegada. Aqueles gritos tiveram o efeito de um raio no meio da praça. Corremos todos, crianças e jovens, mais rápidos, à frente, seguidos dos homens, mulheres e velhos. Não sabíamos se ficávamos alegres ou mais nervosos, não havia certeza de quem voltava. O grito de Kaloré anunciava apenas sua chegada e de novidades.

Na luz vermelha do Sol filtrada pelas folhas víamos apenas um amontoado de corpos e pernas caminhando para cá. Paramos à beira da pista de pouso e esperamos o grupo se aproximar. Com as mãos amarradas por cipós, uns aos outros, no meio vinham os três estrangeiros. Não apresentavam ferimento aparente, apenas a vermelhidão do que poderia ser um tabefe na face esquerda de cada um, roupas rasgadas, um deles com bota em apenas um dos pés, e muito suados. Ladeando-os vinham Kaloré, Mariú e Irajá.

A um sinal do homem mais velho de nós, os estrangeiros foram levados ao centro da praça. As crianças gritando insultos e as mulheres pedidos para que devolvessem nossos homens. Os homens da aldeia emitiam ordem graves, curtas e que não admitiam desobediência para que os prisioneiros andassem, parassem, calassem.

Nosso homem mais idoso, borduna na mão apontada para o peito do homem mais velho deles, perguntou onde estavam Iraputã, Andirá e Xapré. O homem disse que não sabia quem eram. Nosso velho insistiu, o homem continuou negando. As vozes foram se exaltando, nosso velho inquiria e o homem negava, os outros dois calados, olhos arregalados.

Os velhos se afastaram do grupo, confabularam em sussurros em nossa língua nativa, voltaram para o grupo sob nossos olhares curiosos, excitados e nervosos. O mais velho mandou que separassem os homens, cada um deveria ser levado para trás de uma das palhoças, uma afastada da outra, de forma que nenhum poderia ver ou ouvir os outros, a não ser que gritassem.

A noite caiu e nós, crianças e mulheres, das portas de nossas palhoças, víamos os velhos indo e voltando de um prisioneiro a outro por toda a noite. Atravessavam a praça, conversavam com um dos três homens, voltavam a atravessar a praça e iam onde estava o segundo e isso se repetia incontáveis vezes.

Um dos homens estava sendo vigiado por três dos nossos rapazes bem atrás de nossa choça. Quando os idosos vinham para cá, eu entrava em casa e ia lá para o fundo, encostava o ouvido numa das frestas entre as tábuas da parede e tentava diminuir até o som do coração para ouvir melhor o que diziam.

O velho perguntava sempre a mesma coisa, onde estavam nossos rapazes, e o homem negava, chorava, dizia “juro por Deus”, pedia água que lhe era negada, pedia comida que também não era dada. Depois de três ou quatro insistências, os velhos o abandonavam com os vigias e iam em direção a outro grupo escondido atrás de outra casa.

Talvez para deixar os prisioneiros famintos e sedentos ainda mais vulneráveis, os velho

inquisidores passaram a fazer as perguntas enquanto comiam uma capivara dourada no fogo, carne assada cheirosa, em plena madrugada, mesmo assim os homens não falavam.

O céu já começava a mesclar seu azul com o amarelo do Sol nascente, quando os homens foram trazidos para o centro da praça. Os idosos discutiam a um canto, só víamos seus gestos, nem murmúrios chegavam aos nossos ouvidos. De repente o grupo desfez-se e todos se aproximaram dos três homens do avião. Foi ordenado para que os cipós que os amarravam fossem cortados. Mulheres trouxeram caldo de capivara em cuias e beiju enrolados em folhas. Outra trouxe uma panela de barro com água.

Comida e bebida foram oferecidas aos prisioneiros que estavam deixando de ser prisioneiros. Comeram meio tímidos a princípio e vorazes depois de perceberem que era uma oferta franca.

Saciadas fome e sede, os homens foram libertados. Não houve pedido de desculpas, apenas a admissão de que fora cometido um erro de julgamento dos nossos homens que acharam que os três primeiros rapazes a se embrenharem haviam sido presos ou mortos pelos estrangeiros. Como jamais alguém resistira a interrogatório tão demorado e cruel, nossos velhos acreditaram na inocência dos três homens e os libertaram alimentados e com carne, farinha, mandioca e beiju. Esse era nosso pedido de desculpas.

Ficava, porém, a pergunta inicial: Onde estavam Xambré, Andirá e Iraputã? Eram jovens, mas experientes, conheciam cada pedaço da mata e seus segredos. Teriam sido encantados por Iara ou engolidos por Boiúna?

Logo se formaram grupos de voluntários para irem em busca dos rapazes. Cada um queria demonstrar sua solidariedade e coragem. Os velhos conselheiros tiveram alguma dificuldade em organizar os grupos de três que se revezariam nas buscas.

Mal os homens sumiram depois das casas, quase correndo para saírem logo dali, os três primeiros rapazes seguiram o mesmo curso. Foram muitos dias de buscas. Os trabalhos de plantar e caçar estavam comprometidos, sempre faltavam seis homens para o serviço. Ou estavam no mato ou descansando depois de dois dias de missão.

Os relatos eram sempre os mesmos, não havia rastro, nenhum sinal sequer das penas da pulseira que Xambré carregava ou das pinturas de urucum de Andirá em algum pedaço de pau. Havia uma ou outra pista de que eles haviam pisado numa beira de água, mas esses sinais iam sumindo dia após dia, já desaparecidos de vez, e acabavam no nada, numa clareira sem mato, pouco mais de três metros de diâmetro.

Os velhos determinaram o fim das buscas, algum bicho maior e mais feroz que eles havia comido os três e sumido para sempre. Melhor ninguém mais ir para aqueles lados. As caçadas só aconteceriam para o outro lado, a pesca no rio mirim do lado do Sol nascente, não mais para os lados da lagoa. Se os três homens fossem comidos para lá, problema deles.

Passaram-se alguns dias e os três homens reapareceram lá no final da pista de pouso. Não traziam suas tralhas, apenas as espingardas. Não se aproximaram. Eu e mais os meninos que brincavam com os macacos nas árvores da margem da pista, nos escondemos no mato e ficamos espiando. Tínhamos medo daqueles homens que poderiam ter sumido com nossos rapazes e tinham armas. Eles poderiam querer vingança depois do que passaram. Um de nós deveria ir avisar o pessoal da aldeia, mas estávamos tão temerosos, que ninguém arriscou se mostrar.

Nós escondidos no mato de olho neles e eles sentados no fim da pista fumando e olhando o céu. Não demorou para que entendêssemos porque. O som começou como um zumbido, longe e se aproximando. Parece que ouvimos antes deles a chegada do avião. Só quando o aparelho já se mostrava no alto do início da pista é que eles se levantaram e colocaram-se à espera.

O piloto vez exatamente igual ao que fizera da primeira vez, um pouso duro com o avião quicando na piçarra, depois indo até o final da pista, dando meia volta e parando. Desceram três homens que conversaram rapidamente com os outros três. Os que vieram do mato entraram no avião e os que chegaram agora se meteram na floresta.

Como chegou, o avião se foi, rápido e barulhento. A poeira logo assentou, sinal de que vinha chuva, e tudo voltou à calma de antes.

Quando saímos do mato, os homens e mulheres da aldeia começavam a chegar. Não viram o que havia acontecido, apenas o rabo do avião sumindo na primeira nuvem baixa.

Na aldeia os velhos nos pediram que contássemos o que acontecera em volta do fogo no barracão. Nas palhas os primeiros pingos grossos da chuva que demorou três dias e três noites.

Na manhã do quarto dia chegaram os dois helicópteros verdes com soldados e médicos. Nos traziam remédios amargos e a alegria da barulheira dos motores.

Na hora de comer, dois médicos e um outro homem que trazia umas estrelas douradas na camisa comeram com nossos velhos, como sempre faziam, enquanto os soldados e outros médicos se reuniam numa barraca de pano que eles montavam à beira da pista e com uma cozinha com panelas de ferro e lenha. Tiravam a comida de latas e vidros que depois deixavam jogados por ali. Nós recolhíamos tudo e enterrávamos desde o dia em que eu e mais dois meninos nos ferimos enquanto brincávamos com aquilo.

Na palhoça onde os velhos comiam todos os dias, a conversa não foi tão solta e divertida como sempre. Percebíamos que nossos idosos contavam aos militares sobre a chegada dos estrangeiros e o sumiço dos nossos rapazes. Os homens do Exército assumiram um ar sério e disseram que comunicariam os seus chefes daquilo. Prometiam mandar gente e fazer uma busca.

Não adiantou a recomendação de que poderia haver boiúna do lado de lá, que soldados poderiam também ser engolidos. O homem de verde e estrelas douradas disse que não se preocupassem, os soldados estariam preparados.

Terminado o dia, os helicópteros de volta ao seu lugar, tudo voltou ao normal, até que depois do almoço do dia seguinte ouvimos de novo o barulho do avião dos homens do meio do mato. Corremos para nosso esconderijo sob as árvores e esperamos a aterrissagem, mas isso não aconteceu. O avião passou baixinho sobre a pista, só que de atravessado, e sumiu sobre as árvores na direção em que os homens haviam entrado na floresta. Não demorou, novo sobrevoo na mesma direção. De primeira nós achamos que era outro avião seguindo o primeiro, depois vimos que era o mesmo que deveria ter dado a volta na mata e voltado pelo mesmo canto, só que voando mais alto. Antes dele sumir na lonjura, ainda vimos cair alguma coisa de dentro dele. Será que algum homem tinha se jogado do avião em voo?

Dessa vez os adultos chegaram a tempo e viram o ocorrido. Um deles disse que os homens de dentro do avião haviam jogado comida ou redes para os que estavam no chão. Kaloré confirmou que era justamente daqueles lados que estava o acampamento dos homens, às margens do igarapé, onde eles haviam construído um tapiri e faziam canoa. A curiosidade de ir lá ver o que estava acontecendo era grande, mas o alerta para a possibilidade de cobra-grande e a proibição dos idosos, além do medo inconfessável, eram freio. Talvez os soldados com suas espingardas de muitos tiros, quando viessem, conseguissem matar a cobra grande e contar o que está havendo da tapera dos estrangeiros.

No segundo dia chegaram três helicópteros cheios de soldados amados. Não vinham em visita de cortesia e nem adentraram a aldeia. Dirigiram-se apressados em duas filas para a picada aberta pelos homens do teco-teco. Aos poucos, em silêncio, comunicando-se por gestos, os soldados eram engolidos pela escuridão do verde. Ficaram dois homens em cada helicóptero, os pilotos. Um daqueles homens louros que vinham de vez em quando me ensinou a contar até vinte. Eu contei vinte soldados, aí comecei a contar de novo e contei mais seis soldados e mais os seis pilotos. Nunca tinham vindo tantos de uma vez.

Nossos homens, mulheres, velhos e crianças ficaram amontoados na saída da aldeia, os trabalhos parados, caça moqueando sozinha, mandioca azedando, bananas sem vigias para os macacos. Todos esperando o resultado daquela ação. O silêncio cortado apenas pelo farfalhar que vinha da matas, um piado ou outro ou o grito de macaco afoito. Mas esse silêncio foi rompido pelo leve zunido, longínquo. Nossos ouvidos diziam que era o avião dos homens da floresta. Os pilotos vistoriavam suas máquinas sob os capacetes enormes e não ouviam o que nós ouvíamos.

Olhávamos alternadamente para os pilotos e para o céu na esperança que eles vissem ou ouvissem o que já ouvíamos, mas eles não demonstravam qualquer reação ao zunido. Não agüentando a surdez dos pilotos, Itaji saiu correndo e gritando “eles vêm chegando! Eles vêm chegando!”. O piloto mais próximo, pego de surpresa, virou-se assustado já sacando a pistola. Itaji, que tinha certeza que os primeiros homens do avião haviam matado seu filho Andirá, mesmo que os idosos dissessem que não, via nos soldados a oportunidade de matar os invasores e saber que fim deram ao seu filho.

Vendo tratar-se de uma mulher desarmada, o piloto guardou a arma, os outros cinco já se aproximavam. Antes que perguntassem a Itaji quem vinha vindo, o avião despontou sobre nossas cabeças, vindo da mesma direção dos dois últimos voos.

O piloto soltou Itaji e correu para seu helicóptero, um segundo piloto sentou na frente junto com ele e um terceiro sentou no banco de trás, segurando a espingarda de muitos tiros fixa por um pé de ferro. A hélice de cima foi ligada, Itaji voltou com medo de ser cortada, gritando “peguem eles! Peguem eles! Eles mataram Andirá!”. Diferentemente das outras vezes, o helicóptero levantou rápido, não na vertical, mas já na direção de por onde sumira o aviãozinho. Desapareceram os dois, deixando o ruído que se afastava rápido.

Apagou-se o som dos motores, surgiram sons de estalos lá no meio do mato. Sons estranhos como troncos quebrando... Não. Como estalar de dentes de anta... Não exatamente. Sons rápidos, tum, tum, tum, como batidas compassadas em tambor. Muitos tambores, muitos barulhos numa sequência que lembrava o matraquear de macacos no cio.

Assustados, nos enfiamos nos matos, subimos em árvores, escondemos as mulheres e os velhos na vegetação. Desaparecemos como queixada ao ver pintada, rápido, sem ruído e sem rastro. Ficamos imóveis em nossos esconderijos esperando o matraquear parar.

Parou, mas não nos movemos. Os pilotos voltaram para seus lugares atrás dos vidros, tão apreensivos quanto nós, olhos fixos na entrada da picada. Falavam-se por meio dos rádios em seus capacetes, como o Holanda, soldado que sempre vinha com os médicos, havia me mostrado. De longe víamos seus lábios movendo-se. Suas mãos estavam segurando aquelas marchas como eles sempre seguravam para dirigir o helicóptero. Nos perguntávamos se eles voariam deixando os outros na mata como fizera o teco-teco com os outros homens, mas eles não ligavam os motores.

O tempo passava e nada acontecia. Os pilotos, lentamente, largavam os comandos, desamarravam-se das cadeiras, desciam dos helicópteros, mostravam tranquilidade, faziam uma rodinha de conversa, acendiam seus cigarros. A tranquilidade deles nos deu tranquilidade. Aos poucos fomos saindo de nossas locas. Mas não voltamos para a aldeia entregue às mutucas. Nos reagrupamos à sombra das árvores à margem da pista.

Foi muito tempo ali vendo o nada passar diante de nós. Já começávamos a nos inquietas e pensar em voltar a nossos afazeres, talvez nos banhar no rio, quando surgiram os primeiros soldados saindo do caminho. Os da frente traziam as mochilas dos estrangeiros, os outros vinham trazendo outras bugingangas: espingardas, fogareiro, terçados, sacos, panelas... Doze soldados, dispostos quatro a quatro, traziam sacos pretos enormes, com algo dentro, parecia caça. Pelo tamanho talvez fosse sucuri, ou onça, talvez anta ou capivara... Não tinha como saber.

Contei os soldados, nenhum ficara por lá. Os quatro últimos traziam uma espécie de rede com paus do lado. Tinha alguém deitado naquela rede de pano branco que, à distância, não distinguíamos quem era. Do meio do nosso grupo saiu Juacema gritando o nome do filho “Iraputã! Iraputã!”, corria com os braços abertos em direção ao homem deitado na rede.

Os soldados reuniram entre os helicópteros o que trouxeram do acampamento dos três homens. Nossos velhos se aproximaram para saber do que se tratava. Aquele que parecia ser o chefe dos soldados abria os sacos e mostrava outros sacos, só que de uma espécie de vidro que dava pra dobrar, cheio de farinha. Mas não era farinha, dizia o chefe dos soldados, era uma farinha feita de folha de epadú que matava e que era proibida. Aqueles homens recebiam aquela farinha do avião que atirava em pacotes na mata, depois transportavam de canoa rio Uapés abaixo até Barcelos, uma aldeia lá deles, os soldados e os estrangeiros.

Depois o homem abriu os sacos pretos. Dentro estavam os três homens que desceram por último do teco-teco, mas que os adultos não haviam visto, por isso fomos chamados, as crianças, para confirmarmos se eram eles mesmos. Eram. Estavam mortos com os olhos abertos.

Os soldados foram subindo no helicóptero e colocando as coisas catadas no acampamento dos homens da farinha que mata. Arrumaram os sacos com os homens dentro, um em cima do outro, em um dos helicópteros. Já carregado de tralhas e soldados, o helicóptero foi embora. Os demais homens ficaram esperando voltar o helicóptero que saíra atrás do aviãozinho.

As atenções nossas estavam divididas. Mulheres e velhos foram cuidar de Iraputã e assuntar sobre o paradeiro de Andirá e Xambré; os jovens e crianças espiavam a arrumação dos soldados.

Já era tarde, quase noite, quando o terceiro helicóptero voltou. O piloto desceu e nós o ouvimos falar para o chefe deles que não tinha combustível para seguir ainda hoje, que ficaria ali aguardando ajuda. Não foi embora e nenhum mais foi. Ficaram todos. Montaram suas cabanas de pano verde, improvisaram uma cozinha e acamparam ali.

Nós fomos levados à força por nossas mães para também dormirmos, não tinha porque ficarmos acordados a noite inteira.

Porque fomos dormir tarde, não consegui acordar cedo. Despertei com o barulho do motor dos helicópteros se preparando para irem embora. Saltei da rede já correndo e disparei pelo caminho até a pista de pouso. Por pouco não perdi o espetáculo da decolagem. Os soldados subiam, alguns acenavam com a mão, outros faziam cara de mau. Levavam suas barracas e deixavam suas latas e garrafas para enterrarmos.

Eles sumiram no horizonte e oito dos nossos rapazes se internavam na floresta pelo caminho que levava ao esconderijo dos bandidos. Iraputã, mesmo com poucas forças por ter ficado amarrado por tanto tempo e fazendo trabalho pesado enquanto recebia açoites, acompanhava o grupo, os guiaria até o local onde foram enterrados os dois companheiros de aventura.



Marcos Pontes
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domingo, 5 de abril de 2009

Comércio no Pelô

Bându e Bêngue nasceram no mesmo dia no mesmo cortiço na ladeira do Pelourinho.Os pais de Bându, Leôndia e Lucivaldo, eram lavadeira e guarda noturno; os pais de Bêngue, Carmêndia e Clodimir, eram empregada doméstica e apontador do jogo do bicho.Infância feliz tanto quanto a pobreza permitia. Baba nas ladeiras, um ou outro dólar de turista desavisado que arriscava um passeio pelo sítio histórico.Os serviços da casa saiam de graça ou na base do escambo. O eletricista, o encanador, o carpinteiro, a costureira... Todos vizinhos, compadres e amigos, quando não, irmãos. Se não havia perspectiva de riqueza, havia o conforto da casa própria e a solidariedade entre pobres iguais.Bêngue e Bându desde pequenos freqüentavam o Colégio Central com suas calças curtas de tergal e a camisa branca sempre engomadinha por mãinha Leôndia.Rapazinhos, carregavam caixas e mercadorias no Mercado Modelo e estudavam à noite no Central cada vez mais decaído.O governo, de olho grande nos visitantes estrangeiros, desapropriou os casarões e casinhas, expulsou os moradores para o subúrbio longínquo e rifou os imóveis entre seus amigos. A vendedora de acarajé, amiga de artistas famosos, ganhou um restaurante e virou estrela nacional; o sobrinho do deputado da situação que morava na Barra, ganhou o sobrado e montou um bar; o sapateiro, sem padrinhos importantes, foi afastado para um casebre na Federação.Lucivaldo e Clodimir, sem amigos influentes, preferiram voltar para Feira de Santana. Bându e Bêngue, já maiores de idade, ganhando seu próprio sustento, embora pouco, suficiente, viraram garçom e guia turístico no próprio Pelourinho.Iluminaram as ruas, pintaram as fachadas, fizeram propaganda na tevê e no exterior e os turistas apareceram em hordas. O policiamento eficaz inibiu os roubos e assaltos. Mais seguro cobrar caro no coco, no abará e na cerveja.Insatisfeitos com seus salários no lugar onde corriam euros a rodo, Bêngue e Bându partiram para o comércio seguro e protegido pela lei, o tráfico de drogas.



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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Ermitão

Acordava à hora que lhe conviesse, tomava banho ou não dependendo de o tempo estar quente ou frio e sua disposição permitir que o fizesse; podia comer um desjejum ou almoçar uma feijoada, o apetite e a vontade determinavam o cardápio fosse a hora que fosse. Desde adolescente Demerval desejava viver assim e seu sonho pôde tornar-se real com a morte dos pais durante uma pescaria no Pantanal.

Refeito da surpresa e dar dor da perda, permitiu-se conviver com a saudade na solidão e na liberdade com que sempre sonhara. A fortuna herdada foi aplicada em vários fundos e ações que ele administrava pela internet. Por meio da rede, fazia compras e pagava contas, estudava, passeava, mas evitava se comunicar com quem fosse e não lia jornais, assistia a filmes ou ouvia músicas. Tentava comprovar sua teoria de que poderiam haver ermitões urbanos no século 21.

Não saber o que acontecia no mundo, não ouvir as melodias e suas letras que já condenava pela pobreza poética antes do isolamento, não se preocupar com as modas e suas mortes aceleradas em nome da modernização social e da fortuna de quem diz o que cada cidadão tem que vestir, ouvir e pensar era o princípio de seu afastamento e a dita liberdade.

Trancou-se no apartamento depois de fazer um isolamento acústico para evitar os ruídos da metrópole. Na porta da frente, uma portinhola por onde seriam passadas as compras que faria à distância, além das contas de consumo de água, luz, gás, internet e condomínio, todas pagas em débito automático. Havia se livrado de qualquer contato direto com qualquer ser humano.

Não havia relógios, mesmo no computador. Nunca sabia se era dia ou noite, isso o permitia dormir, acordar e comer quando bem entendesse, sem os compromissos cronológicos incutidos em seu relógio biológico desde a mais primeira idade, quando lhe diziam a hora em que deveria mamar ou dormir. Ele ditava suas regras e a única era não ter regras.

Bem tentou desprender-se de outros hábitos oriundos da educação tradicional que tivera e que questionara na juventude. Barbear-se, aparar as unhas, cortar cabelos, tomar banho, lavar louça... O homem não precisava dessas coisas em seus primórdios, não eram, portanto, funções naturais, mas invencionices em nome do progresso, do bem estar e outras baboseiras que negava.

Por algum tempo – ainda tinha incutida nos instintos a noção de tempo -, algo em torno de dois meses, manteve-se sujo, barba crescendo e o apartamento transformando-se num chiqueiro humano. Entendeu na prática as necessidades da higiene. Não estava se suportando ou ao local, percebeu que adoeceria ou os entulhos tomariam o espaço que deveria ser seu.

Faxinou-se e ao apartamento, dezenas de sacos e caixas despejados no corredor pela portinhola e muitos produtos de higiene pessoal e ambiental no sentido inverso, trazidos pelos entregadores do supermercado.

Gripou. Remédios deixados na portinhola pelo entregador da farmácia.

Recebeu pela portinhola cartões de Natal e aniversário e o comunicado da morte da tia Enalva. Respondeu a todos com flores on-line.

Dedicava-se a estudar filosofia. Escarafunchava sites e comprava livros. Aos poucos foi criando coragem de escrever os próprios textos aplaudindo ou desancando pensadores antigos e modernos. Veio a necessidade de mostrá-los e criou seu blog, sem sistema de comentários. Lia, escrevia e blogava. Tornara-se um produtor em grande escala de textos sobre a natureza humana como a vira antes e da qual se esquecia aos poucos.

Escrever sobre algo que não mais conhecia tornava-se um incômodo gradativo. Ele próprio não era mais referência de ser humano, tornara-se exemplar descartado. Seu nome, Demerval, já não fazia sentido. Se o nome é o primeiro diferencial de um ser humano dos outros seres humanos, de quem ele se diferenciava se era único? O que poderia falar de desejos, frustrações, perdas, amores, ódios se, sabe-se lá há quantos anos, não sentia nada disso? Seria válido escrever sobre o luto ou a alegria do parto se era apenas um teórico afastado de seu objeto?

Doloroso reconhecer que estava enganado desde os quatorze anos, embora pudesse ser reconhecida sua grandeza de espírito justamente por admitir o erro. Esteve tangenciando a depressão. Nenhum alento lhe traziam Sartre, Platão, Kant, Demócrito. Prazer algum lhe traziam Berkeley, Rousseau, Spinoza, Hegel e Schelling. Não conseguia criar, especular sobre a alma ou sua ausência, se achava o mais desautorizado homem a falar dos homens.

As janelas antirruídos e as paredes acolchoadas não evitavam a entrada dos trovões repetidos e fortes. As paredes e os móveis tremiam seguindo o ribombar que soava após outro e outro e mais um. Demerval lembrava-se vagamente do cheiro da chuva, seu tato tinha vaga memória da lama sob os pés, os olhos guardavam algo do brilho das gotas iguais e diferentes das que viam no chuveiro. Algo lhe recordava serem aqueles ruídos os sinais de temporal. Por dentro ele era tempestade.

Veio a vontade de rever as águas caírem e o medo de rever o mundo. Olhava os cabelos brancos no espelho que a mãe um dia fixara na parede oposta à Última Ceia e se perguntava como envelhecera sem perceber. Suas certezas foram pelo ralo com o último banho, não havia mais razão para esconder-se do mundo do qual, agora não tinha como negar, jamais estivera ausente. Engolia o orgulho que já não tinha razão de ser e só agora percebia ter sido o autor da sandice de jogar a vida fora em troca de filosofia barata produzida mais por teimosia do que por curiosidade científica ou comprovação indubitável de suas teses.

Assumiria diante do mundo que o desconhecia a derrota que se lhe dera. Vestiu-se com o esmero que suas roupas descoloridas permitiam, empertigou-se com o resto de amor próprio, abriu a porta do apartamento. Encontrou o corredor escuro. Nenhum ruído além dos trovões e pingos nas vidraças.

Apertou o botão do elevador, mas esse não acendeu. Estava morto. Talvez a tempestade tenha provocado um black-out. Desceria os doze andares pela escada.

A cada andar, o silêncio se repetia. Aquelas crianças que costumavam correr pelos corredores hoje seriam adultos e adultos não gritam por brincadeiras sérias, só por bobagens de adultos. Não perdera o vício de analisar os homens, mesmo sabendo-se errado em suas conclusões.

Descia imaginando quem encontraria dos velhos conhecidos, como a cidade havia crescido, embora já fosse gigantesca, como seria recebido pelo mundo que crescera sem ele.

A cada andar, mais escuro. Mais silêncio. Menos trovões. Quase nenhum ruído de chuva.

No térreo respirou fundo, abriu a porta que dava para o saguão do edifício e entrou tentando esconder o medo. Ninguém. Nenhum ruído humano, nenhuma luz. Apenas escuro e frio. Dirigiu-se à rua.

Na escuridão que se espalhava junto com a água e os relâmpagos, pôde ver o perfil dos edifícios onde antes haviam casas. Os postes apagados, nenhum carro, nenhuma alma viva ou mesmo fantasma. Estava só no deserto escondido pelo cobertor negro. Tentava rememorar os caminhos do bairro. Se não se enganava, na segunda esquina à direita veria a praça. A praça estava ali, mas não as árvores. Nos flashs da tempestade via troncos nus. Se a memória estava certa, do outro lado da praça estava o hospital público sempre com filas enormes, gente chorando, gemendo, reclamando, sofrendo, mas gente. O hospital estava lá, mas sem macas ocupadas, atendentes, pacientes, choros, gemidos ou gritos. Silêncio e frio.

No meio da praça o relógio marcava 6. Se fosse dia, estaria escurecendo, se fosse noite estaria clareando, mas era tudo escuro e o relógio funcionava. Estaria certo?

Onde mais ir? Ao metrô!

A escada rolante não rolava e o elevador não elevava nem baixava. Desceu as escadas tateando e onde sempre havia luz, nada havia, nem mesmo a luz. Silêncio e um ou outro pedaço de luz de relâmpago de vez em quando. Silêncio absoluto daqueles de doer os ouvidos e enlouquecer quem o ouve.

Andou por toda a noite que não acabava. Em uma lanchonete escancarada encontrou água e saquinhos de salgados. Na farmácia deserta, remédio para aliviar a cabeça que doía confusa. Na sapataria, tênis mais confortáveis e secos. Andou no frio breu até encontrar um hotel com camas limpas e postas, sem usuários. Descansou por horas, acordou ainda escuro e chuvoso, andou mais e mais. O tempo passava e o sol não vinha. Comia o que encontrava pelos bares, bebia, descansava e caminhava. Gritava pelas ruas, quebrava vitrines na esperança de ver policiais, só o eco respondia, quando havia eco.

Tornara-se o ermitão que sonhara poder ser sem ter com quem discutir suas teorias.

©Marcos Pontes

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segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Passado é Coisa do Passado

- Amor, olha essa foto.
- Onde foi isso?
- Não lembra?
- Não.
- Amor! Foi naquela excursão à serra gaúcha!
- Ah... Quando foi isso?
- Não acredito! Tá tirando com minha cara?
- Que é isso, meu bem? Eu não lembro, só isso.
- Nosso primeiro ano de casamento, Astrogildo. Como pode esquecer isso?
- Se estamos no sétimo, é lógico que tivemos o primeiro, mas também tivemos mais seis. E foram muito bons, não foram?
- Vai me dizer que não se lembra disso também...
- Ora, amor...
- Lembra onde comemoramos o segundo?
- Fortaleza?
- Fortaleza? Esse foi o quarto!
- Chapada Diamantina.
- Nunca fomos à Chapada Diamantina! Tá louco?
- Ih! Então, não lembro.
- Manaus, Astrogildo! Manaus!
- Ah, foi...
- Vai dizer que não lembra...
- Lembro de um calor de sauna e muita água.
- E fomos com quem?
- Com o Clodoaldo?
- Clodoaldo? Que mané Clodoaldo?
- Ah, é! Não te apresentei o Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Quem é Clodoaldo?
- Sei lá! Você que falou nesse tal Clodoaldo.
- Quem é Clodoaldo?
- Você tá bêbado, Astrogildo? Quem é Clodoaldo?
- Sabedeus. Não conheço nenhum Clodoaldo, Suméria.
- E como é que você perguntou se fomos a Manaus com o Clodoaldo?
- Chutei, ué.
- Eu tô casada há sete anos com um maluco e não sabia.
- Com quem fomos a Manaus em nosso terceiro aniversário?
- Segundo!
- Segundo? Quem é segundo?
- Segundo aniversário, desgraçado!
- O que tem o segundo aniversário?
- Nós fomos a Manaus com o Clécio e a Vilda em nosso segundo aniversário de casamento, seu beócio.
- Ah, foi!
- “Ah, foi!”, “ah!, foi”... Você não lembra, confessa.
- Não lembro mesmo.
- Como é que você não lembra coisas tão importantes que nos aconteceram, seu maldito?
- Porque eu penso nos muitos anos que ainda vamos viver felizes. Porque vejo nosso amor em perspectiva e não em retrospectiva.
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Como Era Bom

Como era bom o tempo em que tudo rescindia a jasmim, em que , para tudo, o amor bastava, que o leve toque das mãos afagava a alma e consolava o espírito.



Não havia problema que a troca de olhares cúmplices não resolvesse. Nós tínhamos um ao outro e planos para ambos, para os chicos que se chamariam Cleoneide e Cleovaldo, para nossa casinha na COHAB, para nosso casamento na Igreja Petangular do Saquinho de Trinta Moedas de Judas, para nossa lua-de-mel em Cabrobó... Tínhamos todos os sonhos passeando sobre nossas cabeças, sonhos tão fortes que eram quase palpáveis.



Como eram lindos aqueles tempos...



Você e eu passeando à tardinha na praça da matriz, mãos dadas, sorrisos abertos, causando inveja aos outros casais, tão felizes nós éramos. A gente acordando cedinho no sábado para encontrarmos as frutas e verduras fresquinhas na feira. O caldo de cana com pastel de queijo com gostinho de bom dia e, depois, o dia inteiro juntinhos, fazendo tudo a dois, sonhando e vivendo em comunhão.



Eu bem disse que essa coisa de micareta é coisa do Cramunhão, mas você insistiu em ir e eu cedi. Não deveria ter cedido. Deveríamos ter ido para o retiro da igreja, mas você teimou tanto e eu não conseguia não fazer seus gostos, era meu maior prazer.



No meio de tanta gente seus olhos tinham que encontrar os olhos verdes do Satanás daquela piranha da Doricélia, né, cachorro? Suas mãos descaradas tinham que roçar nas coxas da Doricélia, né, safado? A vagabunda da Doricélia tinha que ficar esfregando aquele bundão dela nas tuas coisas, né safado?



Pois você fique com a Doricélia, filho de uma vaca de três tetas! Amanhã mesmo vou procurar um advogado e vou te deixar sem nada! Ou você acha que eu vou sustentar os dois moleques sozinha? E nem adianta me pedir arrego que eu não dou. Vá para a feira agora com a biscate da Doricélia, se quiser, seu garanhão de brega.



E fique sempre muito mal!



Fartileide.

Rapel

Atanagildo havia aceitado o convite de Siderlene, sua musa das noites mal dormidas, para fazer rapel. Domingo, cedinho, a garota o pegou em casa e partiram para o campo. No carro de Siderlene iam mais duas amigas e todas aquelas tralhas de cordas e mosquetões.

Aos poucos, enquanto despertava de vez, Atanagildo começa a tomar consciência da besteira que fizera. Para impressionar a garota, amante da vida ao ar livre e de esportes radicais, e sob o efeito de duas doses de uísque aceitara o convite sem ter-se questionado se seria capaz de realizar tal tarefa. Estava percebendo sua acrofobia adormecida acordar.

Garoto do interior, onde os prédios mais altos não passavam de sobrados de dois andares, Atanagildo lembrava agora do dia em que fora visitar o primo, morador do décimo primeiro andar de um prédio na Barra, em Salvador. Impressionado com a vista que se tinha do mar, saiu para a varanda. Lembrava agora como se agora estivesse vivendo aquilo, do frio que sentiu percorrer o espinhaço, da vertigem, da sudorese quando olhou para baixo e viu a avenida com seus carrinhos de brinquedo, de como teve que segurar-se com força no parapeito da varanda para não desmaiar, de como gritava histérico e de como o primo teve que conduzi-lo de volta para dentro do apartamento.

De volta à realidade, perguntava-se por que fora tão covarde a ponto de não admitir seu medo de altura. Ela entenderia, saberia que não é uma coisa consciente, mas, não, o bobão tinha que topar o convite e se via dentro de um carro, com três lindas e aventureiras garotas, tendo a certeza que estaria sendo motivo de piedade e chacota dentro de uma hora.

Meia hora de subida por uma estrada de terra sinuosa, por entre árvores e pastos, chegaram ao platô onde já havia uma pequena multidão os esperando. Naquele ambiente em que se era possível sentir não só o cheiro, mas uma névoa de adrenalina, a adrenalina de Atanagildo empestava o ambiente e sua cueca.

Um bonitão com cara de super-herói de quadrinhos convocou os novatos para as instruções sobre o uso do equipamento e as medidas de segurança.

Atanagildo ficou um pouquinho aliviado ao perceber que, além dele, haviam mais doze novatos. Entre tantos poderia se esconder melhor e, talvez, passar desapercebido.

Tudo ia bem enquanto as instruções não passavam de nós, cordas, grampos, posição, como segurar a corda, o que evitar fazer e coisas tais. O instrutor instruía e Atanagildo fazia caras e bocas, demonstrando que entendia tudinho, que não teria dificuldade em praticar. Uma segurança de faz de conta.

Aos poucos começaram as descidas numa seqüência acordada entre os veteranos. Descia um antigo, depois um novato e assim se sucederiam. Um veterano, um novato, um veterano, um novato... Cavalheirescamente, Atanagildo ofereceu-se para ser o último. Para os outros foi uma atitude simpática, para ele foi um tempo a mais para pensar o que fazer para não descer. Chegar à beira do precipício estava totalmente fora de cogitação.

Siderlene foi a quarta veterana. Vendo-se sem os olhares de simpatia e admiração da amiga, sem ter pensado em nenhuma saída honrosa, Atanagildo embrenhou-se na mata e levou três dias de caminhada para cobrir os sessenta quilômetros, evitando estradas e humanos, até sua casa, de onde não sai há um mês.

Quase Pai

O bebê nasceria a qualquer momento. Adanálio alertou os colegas de trabalho e os chefes que, assim que a esposa telefonasse dando o alarme, deixaria tudo como estivesse e partiria correndo, não perderia por nada o parto de seu primeiro filho.

Precavido, durante toda a semana voltava para casa pelas ruas que denominava rota de fuga, ruas laterais onde o trânsito era bem menor que o das grandes vias. O trajeto ficava um pouco mais longo, mas poderia ser percorrido em vinte minutos, enquanto que pelas vias principais poderia levar quarenta minutos ou mais. Familiarizava-se com cada buraco, esquina, semáforo.

O expediente matutino estava no meio quando o celular tocou.

- Amor, vai ser agora.

A mensagem curta sequer foi ouvida até o final. Pulou da cadeira gritando "tá na hora!". Estabanado saiu correndo do escritório em direção aos elevadores antes dos colegas recuperarem-se do susto com o grito que quebrara a calma habitual.

- O elevador! Segura o elevador!, bradava durante a corrida. Para sua sorte a porta abria-se no justo momento. Entrou, a porta fechou-se. Estava subindo. Droga!

Apertou o botão 6 do andar imediatamente superior. A porta abriu-se mais lenta que sempre. Saltou. As escadas. Desceu como um atleta de cem metros rasos. Passou a toda pelo saguão, pela portaria, pela porta rumo ao estacionamento.

O carro na vaga 1. As chaves! Esquecera-as no bolso do paletó pendurado na cadeira. Cérebro rápido como um ladrão, pega o celular e liga para o escritório. Os dois toques antes do atendimento pareciam um ano.

- Sanderléia, rápido, esqueci a chave no bolso do paletó. Rápido! Joga pela janela.

Sanderléia prestativa, mas com um raciocínio lento, esbaforida abre a janela, vê Adanálio na calçada fazendo gestos como um operador de taxiagem, não entende o que sinalizava o quase pai, atira o paletó com a chave no bolso.

Aberta ao vento, a roupa faz acrobacias e cai sobre a marquise, lenta como um pára-quedas. Xingava enquanto corria para a portaria, "mulher burra!".

O porteiro não entendia nada pela segunda vez em poucos minutos ao vê-lo passar como um raio. Nada de elevadores. Escadas subidas de dois em dois degraus. Corredor. Abre a porta da sala de espera do escritório do advogado num supetão. A secretária solta um grito, atira os papéis que segurava para o alto, tropeça no bebedouro derrubando o garrafão quase cheio que se arrebenta no chão. Cachoeira mineral que alaga o carpete e os documentos.

Em sua carreira irrompe no escritório. O advogado, em choque, vê sua peruca voar enquanto despenca da cadeira aos gritinhos. A cliente idosa reage apenas com o esbugalhar dos olhos e a cara de pânico. A janela travada por causa do ar condicionado. Pega a cadeira vazia do advogado, agora encolhido no canto da sala em posição fetal, e a arremessa contra o vidro, lançando cacos em todas as direções e o barulho de um trovão seguido da sirene do alarme.

Salta para a marquise, pega o paletó. Tem vontade de se jogar dali direto para a rua, mas, sensato, percebe que altura não recomenda. Salta de volta para o escritório. Na porta já coalhavam curiosos. A secretária histérica grita "pega! Pega!". O contador tenta segurá-lo, a dentista, o office-boy, a pequena multidão. Com os braços agitados como um nadador frenético, tentava se desvencilhar enquanto berrava "sai! Meu filho vai nascer!". O cotovelo acertou um nariz, o dedo entrou num olho, a palma da mão acertou uma orelha, viu uma dentadura voando.

Sob impropérios e palavrões a escada que desceu voando. Portaria. Uma peitada no moto-boy jogando cada um para um lado aos tropeções, reequilibra-se como Pelé e vê um capacete no ar seguido por dois envelopes. Calçada. Estacionamento.

- Moto-boy filho de uma égua!

Xingava não pela trombada, mas pela moto estacionada fechando seu carro. Tentou arrastá-la. Não conseguiu, as rodas travadas. Atirou a moto no chão e, com uma força que não sabia ter, afastou-a para longe do caminho dos pneus. Abriu a porta, atirou o paletó no banco do carona e partiu a mil. Ainda pôde ver a turba saindo pela portaria à sua caça.

Viraria à direita no primeiro semáforo. Fechado! Um ano para abrir e os carros da frente impedindo que cometesse uma infração. Abriu. Vira. Acelera.

Como previra, o trânsito era tranqüilo naquelas ruas. Poderia aumentar a velocidade, na maioria vias preferenciais. E se houvessem crianças brincando na rua? Um cachorro? Um velhinho atravessando? Corria apertando a buzina com força desejando que fosse uma sirene.

Voava pelo asfalto liso. Ao passar por uma esquina, teve a impressão de ter visto um policial numa moto na transversal à direita. Estava certo, era um policial que se apresentava à sua retaguarda, sirene e luzes ligadas.

A cidade estava muito violenta, a polícia muito tensa. Melhor parar para não correr o risco de receber um tiro de um policial afoito que já se comunicava pelo rádio, provavelmente pedindo reforço, via pelo retrovisor. Seta para a direita, reduz a velocidade e encosta no meio-fio. O policial pára alguns metros atrás, saca a arma, agacha-se atrás da moto.

- Rápido, seu guarda, rápido. Multa logo e me libera, falava entre dentes.

- Abra a porta devagar e saia do carro, gritava o policial.

Pombas! Tem que ser devagar?. Obedeceu, mãos para o alto.

Ele não queria sair devagar, desejava apressar as coisas, mas não faria nada impensado que pudesse fazer seu filho nascer órfão de pai.

O policial com a pose de autoridade que é peculiar à função, talvez esperando uma oferta de propina que não viria jamais do correto Adanálio, ou apenas exercitando o poder, dava sermão e multa. Inquieto o quase novo pai ousou interromper e explicar que a esposa o aguardava para que a levasse à maternidade, daí tanta pressa.

- Por que o senhor não disse antes? A minha também está grávida e eu imagino seu desespero. Não se desespere, cidadão! Siga-me que lhe farei a escolta, falava de peito inchado o policial do alto do seu coturno e importância.

Agora eram dois sem freio pelas ruas do bairro: o policial, sua moto e sua sirene, e Adanálio com seu desespero e a camisa empapada de suor.

Oitenta, cem quilômetros por hora pelas ruas estreitas. Os poucos carros que vinham à frente encostavam ao som e luzes da polícia. Agora as coisas estavam quase perfeitas.

Malditos vândalos! Roubaram a tampa do bueiro!

O policial viu a tempo de reduzir a velocidade, mas não de evitar a queda. Saiu catando cavaco pelo asfalto, moto estraçalhada quicando sem rumo, a freada brusca de Adanálio que mal espera o carro parar e já salta correndo em direção ao policial deitado que mantinha a pose de herói:

- Vá, cidadão, sua esposa precisa mais do senhor do que eu nesse momento.

Com o celular na mão e ligando para o serviço de ambulância, Adanálio sabia que não poderia abandonar o soldado sozinho sobre o asfalto fervente e sob o sol escaldante.

Já juntava gente. Turba, burburinho, os moleques depenando a moto, as velhas e seus "coitadinho", os inventores de histórias e suas várias versões, o calor infernal e nada de ambulância.Juntos chegam o socorro e a rádio patrulha. Pressa no socorro, vagar nas explicações. O próprio guarda ferido fala a um colega o ocorrido, ajudando a liberar Adanálio.

Dificuldade em se livrar da multidão. Atenção no caminho, velocidade controlada e nervos quase. Nada mais poderia dar errado. E não deu. Caminho livre e sereno até o edifício onde morava no oitavo andar.

"Olá" para o porteiro, corrida até o elevador, aperta o botão e a luz não acende.

- Tá sem energia, doutor, faltou agorinha.

Escada. Por sorte não parara com o futebol domingueiro, o preparo físico seria essencial. Subida, dois em dois degraus, oito andares. Rezava enquanto subia.

Na porta do apartamento o bilhete curto e duro: "Fui de táxi, seu irresponsável!".

Exausto, sentou-se no chão, recostou-se na porta, respirou fundo e tomou uma decisão definitiva e irrevogável:

- Vasectomia.

Aleivosia

Era aleivosia mesmo, Teófes, tô te dizeno! Como eu num havéra de sabê a deferença entre aleivosia e gente de carne e osso? Lósco que era coisa do ôtro mundo, tô te falano.

Purque eu sei, ora. Óia, falá cumigo inté que ela falô, mai eu num posso dizê o que foi, tu num ia gostá de sabê.

Num inséste, Teófes, num posso falá, não. Dosulivre!

Que ôme teimoso! Se eu tô falano que era aleivosia, é purque era, disgrama.

E como que tu sabe que num inzéste?

Ah, o pade disse... Logo o pade. Num é esse pade que fala que é pecado, vai prosinferno quem deseja a muié dos ôtro? E apois. É o mesmo pade que reza a missa todin-a oiando pus juêio de dona Zândi de Urbino da farmaça. Num é ele que diz que é pecado negoçá fora do casamento? Pois num é ele mesmo que coiseia com umas trêis carola lá na sacristia e todo mundo sabe? Pur que eu havéra de querditar nele quando diz que num inzéste visage? Apois eu lhe afirmo que inzéste e eu vi com esses zói que hai de vê Jesus Cristin-o no dia do juízo. Tu vai crê ni mim ô num pade mintiroso?

Oxe! Quando que eu mintí pa tu?

Ah, mai num tem valença. Nóis tava interessado na mesma muié e dizem que no amô e na guerra vale tudo, num dizem? E apois? Mai tu tomém mentia pa eu, ô tua acha que eu num sei que quem mandava aquelas frô pa ela era tu? O peó é que ela num ficô nem cum eu nem cum tu. Terminô fugino com o engomadin-o lá das Grota Grande. A gente perdemo junto.

Como? Só vai crê n’eu se eu dissé o que ela falô? Posso não, Teófes, num vai sê bom pa tu sabê.

Tá, foi ansim. Eu tava lá nos fundo do cercado. Era meia noite quando iscuitei os porco fazeno algazarra. Peguei a socadêra e fui lá pensano que pudia sê cobra, cachorro do mato, filiça ô outro bicho.

Rodei o terrêro todo, cavuca de cá, cavuca de lá e nada. E os porco grunindo. A lua tava cheiona, amarela, alumiano tudo, facim de vê tudo derredó. Mai eu num via nada.

Cansado de percurá, sentei na cerca, iscorei a ispingarda no morão, peguei uma paia e fiquei ali pitano, isperano aparecê o bicho que causava o rebuliço. Aos pôco a porcada foi carmano, carmano e vortô o silênço. Só os grilo, os sapo, os vaga-lume e os bacurau imbaxo do lua, e eu pitando aquela gostozura que Deus deu.

Cabei o cigarro, vi que tava tudo na paiz do Sinhô e arresorvi vortá pra rede. Quando dici da cerca e me virei pa pegá a socadêra, ela tava impé do lado. Muito alta, branca mais branca que a luz da lua, cum vistido branco inté os pé que num tocava o chão, os zói azuzim, azuzim, oiando pa eu.

Subiu um gelo pelo ispin-aço, sinti os cabelo ripiá, minhas perna bambeô, a boca secô. Num cunsiguia mais me mexê. Ela oiava pa eu com os zoião azul. Daí ela me preguntô um-a coisa que eu, gaguim que nem o Zelotéro, quaix sem voz, respundi. Daí ela falô ôtra coisa e sumiu no ar.

Posso dizê não, Teófes, num inséste.

Que caba mais teimoso!

Ah, é? Só querdita se eu dissé? Intonce vô dizê.

Ela priguntô se eu era o Teófes Figueira dos Anjo. Eu dixe que num era. Aí ela dixe que eu adiscurpasse ela, que ela que ela quiria falar era cum o Teófes. Pronto, tu priguntô, eu falei.

Péra, Teófes! Vorta aqui! Num dianta se iscondê, não, Teófes, uma noite ela te acha! Vorta, Teófes!

Num te falei, Raonílio, que esse tar de Teófes é um cagão? Ganhei a aposta? Intonce paga a pinga.

Ari Burro

Aristodemo não teve o amor de mãe, morta no parto. “E daí?”, respondia para fazer pouco caso de sua perda, “se mãe fosse bom Jesus não tinha deixado a dele”. Em troca recebeu a vingança do pai, Deleutério, que o culpou por toda a vida por sua viuvez. Nem de longe isso afetou o garoto ingênuo que via em tudo ensinamentos e fortaleza. Sequer percebia o ódio mal contido do pai.

Não fosse a Dozinha, sua tia mais nova, para dar-lhe leite, trocar-lhe os cueiros e todos os cuidados mínimos, porém capengas, já que Dozinha tinha pouco mais de dez anos de idade e cuidava do bebê como se de uma boneca, Aristodemo teria morrido à mingua ou sufocado em suas próprias sujeiras.

Cresceu descalço e nu até que uma alma caridosa da vizinhança lhe presenteava com um calção velho que já não servia mais para os próprios filhos.

Quando não estava carregando água para a limpeza da casa, para o banho de Deleutério, indo e voltando da venda de onde trazia alguma farinha, rapadura e cachaça, varrendo o terreiro, alimentando os porcos e galinhas, que por sorte andavam livres pelo quintal, diminuindo suas tarefas, o moleque pé-de-vento estava correndo de um lado para os outro pelas ruas do lugarejo. Metia-se nas conversas, hora enxotado, hora afagado, carregava sacolas na feira, sentava na calçada para ouvir o velho cego que tocava pífano na porta da igreja em troca de alguma moeda. Ajudava as lavadeiras com suas trouxas rumo ao rio, pegava na vassoura junto com o coroinha depois da missa para deixar o adro da matriz sem pó, ajudava as velhinhas a atravessarem as ruas evitando as bicicletas e carroças. Não parava.

Um dia perguntou ao pai por que recebera tal nome, ao que, sem medir sua maldade, Deleutério dissera que era o nome do burro que ganhara do avô. Sem entender a ofensa, deixou de lado até que o Calafeu, filho do dono da venda, perguntou-lhe a mesma coisa. Inocentemente contou a origem do seu batismo – batismo por assim dizer, nunca fora batizado. Virou motivo de gozação da molecada, sem dar-se conta da crueldade por trás.

Dona Dorazilda, a professora, penalizada, tentou consolá-lo, mesmo ele nunca ter-se sentido ofendido, explicando que o burro era um animal forte, trabalhador, o melhor amigo do sertanejo. O efeito foi o contrário do esperado pela velha. A partir de então o próprio Aristodemo se apresentava como o menino-burro, orgulhoso, era forte, trabalhador e o melhor amigo das pessoas do lugar. Virou o Ari Burro e a chacota perdeu a força, virou nome.

Ari Burro crescia com um sorriso nos lábios, pernas rápidas, raciocínio pronto e sabendo fazer de tudo.

Um dia chegaram as freiras. Montaram uma escola. Saíam pela periferia daquela periferia catando as crianças mais pobres e as levavam para o semi-internato. Em troca da disciplina rígida, dos ensinamentos puxados de álgebra e gramática, acrescentavam-se os religiosos, de arte, canto e a inseparável palmatória. Davam roupas limpas, cadernos, lápis e três refeições por dia. A última parte interessou a Ari Burro.

Se fosse necessário aprender a ler, a somar e estudar a Bíblia naquelas intermináveis horas em troca de uma comidinha quentinha e feita por mulheres tão limpinhas, estava disposto ao sacrifício.

Não foi fácil domar o xucro Aristodemo. Foram palmatórias e mais palmatórias, vara de marmelo na bunda, puxões de orelha, ficar em pé por duas horas, imóvel, sob o sol quente, castigo de joelho no milho, mas aos poucos as irmãs o moldavam. Ele agüentava pela sopa, o pão, o café com leite, o arroz com galinha à cabidela nos dias festivos e os doces de batata que, volta e meia, aparecia em suas mesas.

Já não se via mais Ari Burro correndo pelas ruas, ajudando a quem precisasse, carregando embrulhos ou trouxas de roupas. As beatas varriam o terreiro da igreja, as velhinhas atravessavam as ruas sozinhas. Nem Deleutério tinha mais chance de espinafrar o filho que, quando em casa, se refugiava no fundo do quintal sob a jaqueira com seus livros e cadernos.

Em sua primeira semana no colégio das freiras, lhe perguntaram o que gostaria de ser quando crescesse.

- Deus.
- Ninguém pode ser Deus, Ele é Único!, assustou-se irmã Anunciata.
- Mas eu quero ser Deus.
- Não blasfeme, garoto, ou vai para o castigo.
- Irmã, a senhora não perguntou o que eu queria ser? Eu quero ser Deus.
- Você não quer ser padre?
- Eu até queria, mas agora eu quero ser Deus.
- E posso saber por que o senhor quer ser Deus?
- Porque ele é rico.
- Quem disse que Deus é rico?
- Eu sei.
- E como o senhor sabe?
- Todo dia o padre não passa um saquinho na missa recolhendo dinheiro do povo e diz que é pra Deus? Se fosse pro padre eu queria ser padre, mas já que é pra Deus, eu quero ser Deus.

Surra de vara de marmelo! Castigo! Um dia sem comer.

Desistiu de ser Deus. Padre já estava bom.

Já no seminário, um dia recostou-se na janela observando a vida na cidadezinha e viu um garotinho pretinho como ele, descalço, vestindo um calçãozinho rasgado e sujo, atravessando a praça correndo em direção à venda do seu Sodó. Pouco depois o garoto saía correndo de novo com um pacote de velas na mão, um sorriso na cara e a velocidade de um alazão.

Algo despertou em Aristodemo. Empertigou-se, clareou o cenho antes carregado, como se iluminado por divina luz. O que estava fazendo consigo?

- Ora, ora, ora. Não é que estou me tornando um burro mesmo? Eu não era Ari Burro à toa...

Arrancou a batina, saiu do prédio e voltou à sua vida livre de antes com seu pífano, sua sandália, a pouca roupa e ajudando de verdade as pessoas a quem sempre teve tanto bem e não percebia.

Insônia e Vigília

Tornou-se um par ímpar, diferente em quase tudo. Suas vidas intercederam-se quando, num desses encontros inexplicáveis da vida, se bateram em frente a uma estante de poesias na livraria do bairro.

Ele procurava Vinícius por paixão pela poesia do Poetinha, ela procurava em Vinícius uma companhia para as madrugadas insones.

Bearrice não dormia havia anos. Não era uma doença, somente uma companheira constante. Simplesmente não dormia. Gastava as horas lendo ou escrevendo. Não sentia cansaço, fadiga e nem mau humor. Apenas não dormia.

Lembrava que seu último sono longo fora há dois anos quando abrasava uma paixão feliz e incontrolável por Zenildo. Foi um amor de meses que se acabou com a transferência do rapaz para Santarém. Com seu próprio negócio e uma vida cheia de compromissos, ela não pôde acompanhá-lo e as noites acordadas voltaram.

Foi aí que percebeu que por toda a vida só dormira bem quando estava feliz.

Com Mateneu ocorria o oposto, dormia quando bem queria. Com vida solitária, sem amante ou grandes paixões, dormia para livrar-se dos dias vazios. Na leitura e nos sonhos vivia aventuras, romances correspondidos e completos. Seu dia se resumia às oito horas de trabalho e às obrigações chatas da vida de adulto. Cumpridos os compromissos, se atirava na cama com um livro e lia até o sono chegar. E sonhava com o que lera. Já fora D’Artagnan, Quixote, Eduardo Marciano, Macunaíma, Vadinho... Acordado era apenas mais um bedel da prefeitura. Os sonhos eram mais divertidos.

Aquele último Vinícius na prateleira encarregou-se de provocar o encontro com que ambos fantasiavam encontrar.

Cavalheirescamente, ele ofereceu à loira Bearrice a prioridade da compra. Ela, já com todos os demais livros do velho Vina na prateleira, insistiu para que ele levasse aquele. Enquanto discutiam quem ficaria com o livro, sentaram-se para um cafezinho, ali mesmo, na livraria. Aos poucos a conversa foi tomando outros rumos, suas próprias vidas, nomes, afazeres... Essas conversas próprias de quem acaba de se conhecer e que não deseja a separação breve.

Quando receberam o aviso do funcionário que a livraria estava fechando, perceberam o quanto conversaram. Era hora da decisão. Ele ganhou. Bearrice ficaria com o livro e, depois de lê-lo, o emprestaria a Mateneu. Trocaram os números de telefones com o compromisso de um novo cafezinho logo, logo.

Cada um para seu lado e um gostinho bom durante a insônia dela e as viagens noturnas dele.

Aquela madrugada ela atravessou folheando a lista telefônica, número por número, em busca do endereço do rapaz. Ele dormia com ela entre nuvens.

Nas primeiras horas da manhã ele recebeu das mãos de um estafeta o livro em embrulho colorido e dedicatória singela. Para retribuir o carinho e o presente, sem saber qual dos dois fora mais tocante, retirou do bolso o papelzinho em que anotara o nome da loura e a convidou para um jantar.

Mais uma despedida difícil à noite. A comida foi detalhe que degustaram aos pouquinhos para que não houvesse fim, não o jantar, mas a companhia. Falaram de suas vidas sem omitir detalhes, um queria que o outro soubesse tudo a seu respeito e queria saber tudo do outro. Muito foi dito, tudo foi ouvido e as horas passavam.

Alta madrugada foram novamente enxotados pelo último funcionário.

A vontade de não se separarem foi maior que a timidez e a pudicícia. Ela tomou a iniciativa e o convidou para irem à sua casa. Não houve titubeação, a resposta veio rápida.

Desde aquela noite, na mesma cama, ela dorme como uma criança, sorriso nos lábios e ele atravessa as noites velando para que a felicidade não acabe.

Bozó

Cinco filhos e uma mulher, um barraco precisando de reformas antes que caíssem os caibros nas cabeças da família, Jairino se virava para colocar pão na mesa e os apetrechos da escola da meninada, duas coisas para as quais não relaxava.

Fez da sala de estar um botequinho onde só cabia o balcão entre ele as prateleiras lotadas de garrafas de cachaça, umas puras, outras temperadas, e os clientes que se aboletavam nos quatro bancos de pernas altas.

Num bairro pobre de uma cidade pobre, o boteco é o parque de diversão dos adultos, barato e de onde todos saem com a sensação de que não existem problemas, rindo ou chorando à toa, amando ou odiando mais suas mulheres conformadas.

A féria era dividida em três partes. Uma para a alimentação, outra para as demais necessidades da molecada e a terceira, o capital de giro que aplicava aos pouquinhos na birosca.

Já conseguira comprar duas mesas que se espalhavam com banquinhos na calçada, por falta de espaço dentro, e já ensaiava a compra de uma geladeira. Se a cachaça dava um lucro considerável, a cerveja incrementaria os negócios. Abrira uma porta nos fundos que dava direto na cozinha e de onde vinha um tira-gosto de carne assada aumentada com muita farinha. Fazia volume e economizava dinheiro na enganação.

Volta e meia aparecia um espertinho com um baralho e montava-se um jogo para tirar os níqueis dos incautos bêbados ansiosos por um dinheirinho extra. Jairino observava as táticas e técnicas do espertalhão, como ele fazia para viciar o carteado, como alguns vinham com um parceiro que fingia ser desconhecido; não deixava de notar um “peru”, como chamavam os assistentes que davam pitaco no jogo de fora da mesa e o que menos falava usava óculos de lentes espelhadas e se punha atrás do adversário do dono do baralho.

Normalmente esses jogos terminavam em bate boca e confusão, hora em que Jairino desmanchava a mesa e fechava o bar antes que uma peixeira saísse da cintura de um mais afoito. O dono do baralho, sempre saía com a algibeira cheia e sorriso na cara.

Em outras oportunidades, surgia um dominó nas mãos de dois amigos que jogavam sozinhos e se divertiam, atraindo aos poucos a curiosidade dos demais. Não demorava, havia fila para jogar. Invariavelmente os dois primeiros jamais eram derrotados, causando inveja e desconfiança dos demais que montavam suas duplas, discutiam estratégias e, mesmo assim, perdiam seus trocados nas apostas.

Para não chamar atenção demasiada, os embusteiros se deixavam derrotar de vez em quando, tomavam um refresco e esperavam a oportunidade de voltarem à mesa para continuar a exploração dos adversários embriagados.

Jairino percebia os sinais, como sutis coçadas de nariz, pigarros, ajeitadas diferentes na aba do chapéu. Mas, como os barbeiros e médicos, guardava segredo, quem quisesse se deixar enganar, que arcasse com os prejuízos, a ele só cabia o lucro da venda das bebidas e tira-gostos de mais farinha e pouca carne.

Pela satisfação dos desonestos, o botequeiro passou a imaginar uma maneira de, ele também, se dar bem com tramóias inocentes. Ninguém chamava ninguém para jogar, a usura e a necessidade de dinheiro se encarregavam de levar os abestalhados a se arriscarem num jogo que não dominavam. Jairino passava horas por dia matutando o que poderia fazer de diferente para também montar sua banca de jogos. Nada de baralho, teria que contar com um cúmplice, ou dominó.

Na feira, onde ia aos sábados de manhã comprar carne barata e cachaça baldeada, viu um grupo de estivadores numa rodinha, gritando, sorrindo e apostando. Aproximou-se, curioso, sabendo, por instinto, que ali havia uma jogatina. Jogavam dados. Dados comuns, cada um apostando em um número. Ganhava toda a bolada quem acertava. Era um jogo rápido, portanto as apostas eram pequenas, coisas de centavos. Essa alta rotatividade lhe interessava. Talvez fosse o jogo que procurava. Não foi difícil encontrar uma biboca onde se vendessem dados e o bozó. Só faltava uma estratégia para nunca perder.

Naquela tarde o boteco lotou. Faltou mesa e alguém providenciou caixotes de madeira que foram usados como mesas e tamboretes. No meio de alguma discussão sobre mulher, futebol ou política, alguém mais nervozinho dava um tapa na madeira, esquecendo-se que não era uma mesa das mais sólidas e os copos de cana se espalhavam. Estava ali o que Jairino procurava!

No dia seguinte, sozinho, no meio da tarde, poucos clientes no bar, como quem não quer nada Jairino pegou os caixotes, montou sua banca e passou a jogar os dados. Com carvão desenhou doze quadrados e enumerou cada um, em ordem crescente, a partir do número 1. Punha uma pedrinha em determinado número, aleatoriamente, e despejava o bozó. Conferia os números sorteados com sua aposta, quase sempre errando. O filho, vendo aquilo, confirmou que o pai tinha apenas uma possibilidade, em doze, de acertar, menos de dez por cento. O que significava boa margem de lucro, se doze apostadores de espalhassem nas apostas.

Não demorou a se aproximar o primeiro curioso. Jairino explicou que estava se divertindo sozinho, por falta de companheiro para jogar. Que não fosse por isso, os clientes apostariam. Levava a bolada quem acertasse o número.

- Peraí! Assim, não! – Jairino ditou as regras – Se ninguém acertar, eu fico com tudo. Quem acertar leva o dobro do que apostou. Se ninguém acertar, eu fico com tudo!

Os outros fizeram as contas. Só valeria a pena se todos os quadradinhos estivessem cobertos por apostas. Juntaram-se doze homens rapidinho em volta dos caixotes. Todos fazendo suas apostas.

Sempre alguém ganhava e Jairino apenas jogava os dados, nenhum lucro. A turma bebia, ganhava e perdia, os vencedores gozando dos outros, os perdedores aguardando sua sorte. Jairino apenas jogava os dados.

A assistência já bêbada, o botequeiro balança o copinho de couro, chama pelas apostas, e coloca o bozó sobre o caixote.

- Casem o dinheiro! Casem o dinheiro!

Todos colocaram suas moedas nos devidos quadradinhos.

- Tá casado?

E o “sim” coletivo.

- Ninguém mexe nos dados. Vou mijar e já volto. Ainda tá em tempo de mudar, quem quiser.

Dito isso, saiu pelas portas dos fundos e ficou espiando pela fresta das madeiras da parede.

Urozimbo, não se contendo, levantou o bozó e olhou os dados: 8. Com o dedo indicador em riste diante dos lábios, pedia silêncio aos comparsas. Retirou a moeda que havia depositado no 10, juntou mais algumas a ela e colocou todas no quadradinho do 8. Os demais, para não saírem perdendo num jogo que já sabiam perdido, fizeram o mesmo. Todas as moedas e as primeiras cédulas, todas sobre o número 8. Gente que nem estava apostando se juntou ao grupo. Mais e mais dinheiro, uma pilha considerável. Só se preocupavam com uma coisa: Onde Jairino iria arrumar dinheiro para pagar o dobro de todas aquelas apostas.

Dinheiro casado, silêncio de sociedade entre os parceiros, aguardaram ansiosos a volta de Jairino. Este entra fechando o zíper da calça como se tivesse acabado de sair do banheiro.

- Tá casado?

O “sim” coletivo veio mais alto e mais animado.

- Ninguém quer mudar?

- Não!

Com um tapa no caixote, que fez os dados se revirarem sob o copo, Jairino gritou enquanto agia:

- Vou abrir!

Deu 3.

Frizo

Como só quem tem anjo-da-guarda garantido são as crianças, os velhos e os bêbados, foi dado a Frizo um daqueles parrudos, pau pra toda obra. A cada dia o tal anjo tinha que fazer trabalho dobrado para salvar a pele do seu protegido.

Frizo – na verdade, Etelvino, no batismo – se metia em qualquer enrascada que por ventura aparecesse pela frente. Dizia que ele não as provocava, elas que o chamavam. Já passou a mão em mulher de samango, já parou touro bravo na mão depois de tomar uma garrafa de jurema, já espalhou pela cidade que o promotor tirara a mulher com quem se casara do brega São João do Sabugi, já passou cinco minutos embaixo d’água para ganhar a aposta de uma garrafa de pinga... De todas as suas aprontações se salvou sem arranhão ou olho roxo. Não dava folga para o pobre anjo.

O apelido ganhara do dono da bodega, o Herbínio. O merceeiro, dono do primeiro freezer de Ipueiras, dizia que o amigo tinha a cabeça fria como um “frizo”, suficiente para o codinome se espalhar.

Como todo peso da vida tem seu contra-peso, Frizo tinha sua Geriana. Mulher de uma delicadeza e elegância únicas naquela caatinga. De manhã lavava roupas das famílias de mais posse, à tarde passava e entregava, à noite se encarregava das costuras. Não encontrava mais lugar na casa para esconder a féria de tanta labuta. Fosse onde fosse, o marido sempre encontrava e dava um desfalque para as farras. Diziam as boas e más línguas que Geriana tinha lugar garantido no céu por suportar homem tão folgado. O cabra sumia por dias, chegava bêbado, maltrapilho e cheirando a alfazema das quengas. Ela, nem um pio. Preparava o banho, dava de comer, arrumava a cama e exigia silêncio dos cinco filhos para que não perturbassem o sono de Frizo. Ele, um folgazão; ela, uma conformada.

Nosso personagem, porém, não era um mau sujeito. Fazia camaradagem fácil e terminava amigo dos desafetos, bastava uma dose de uca. Ajudava os vendilhões a arrumarem suas mercadorias, fazia frete nas costas por um níquel ou uma cachacinha ou um pedaço de jabá. Animava o ambiente em que se encontrava. Veio ao mundo para se divertir e divertir quem o cercasse. Era apenas um folgazão boa praça.

Naquele inverno choveu de matar lambari afogado. A cidade festejava a bonança que as águas de São José prometiam. Nunca se vendeu tanta aguardente, ao pé do alambique Frizo fazia ponto para ganhar suas doses por conta da comemoração.

Ficou bêbado como há muito não ficava. A festança acabou, os demais ébrios iam para suas casas ou para o bordel amparados por suas mulheres fixas ou ocasionais. Frizo ficou sozinho com o último garrafão e se aboletou no banco do coreto da pracinha.

Foi tanta água que o riacho seco virou rio, o açude chorou, casas de barro batido viraram lama. A festa acabou em choradeira. Nem a torre da igreja resistiu à enchente e veio a baixo. Criações sumiram, móveis desciam o boqueirão junto com porcos e bodes. Já se preparava uma novena pedindo arrego ao santo durante a madrugada.

A mães punham os filhos sob os braços, como galinhas chocas, enquanto rezavam em voz tão alta que uma vizinha fazia coro a outra sem saírem de suas casas. As ladainhas se confundiam com o chuá das duas corredeiras, a que caía do céu e a que rolava pelas ruas.

O coreto onde Frizo roncava teve suas pernas arrastadas e o tablado de madeira virou jangada com sua cobertura milagrosamente intacta. No seu sono, Frizo sonhava que atravessava o Atlântico comandando um navio que ia para a Arábia. Sonho gostoso, daqueles que fazem a gente sentir a sensação das ondas. A chuva caía, a correnteza das ruas virava rio e seguiam o rumo natural dos rios, o mar. Navegando em seu sono e no quiosque-jangada, ainda abraçado ao garrafão, Frizo navegava para as Arábias.

Acordou importunado pelo sol ardendo a cara. Sentou no banco esfregando os olhos. Ao abri-los deu de cara com uma multidão que o cercava. Gente de toda espécie, velhos desdentados, velhas beatas e fuxiqueiras, crianças espantadas com o espanto dos velhos, a polícia... Oxe! A polícia? O que aprontara dessa vez?

- Eta, jurema braba!

Olhando aquele amontoados de caras desconhecidas, quebrou o burburinho com a voz ainda bêbada e um bafo de desmaiar onça:

- De onde veio esse povo todo? Vai ter festa em Ipueiras?

O samango:

- Ipueiras? Tu tá em Acaraú, cabra! E o seu Cadorges do hotel tá querendo comprar sua jangada de cobertura.

- Ave Maria!, Frizo se espantava olhando o garrafão pela metade. Acho que vou tomar o resto pra ver se chego nas Arábia.

A Morte da Morte

Voltando pra casa, tranqüilinho, com seu livro de passar o tempo no colo, Ceraldo lia no banco do ônibus, hora e meia até chegar em casa. O gordo ao lado, fedendo a suor e cebola, o imprensava contra a janela. Só mesmo uma boa leitura para abstrair-se daquele ambiente lotado, calorento e inquieto.

Sua absorção na leitura foi quebrada por um perfume adocicado, suave, coisa feminina. Virou a cabeça esperando dar de cara com o gordo de barba grossa e perfume e deu-se olhos nos olhos com uma morena daquelas de se fazer ceder o lugar. Desnecessário, ela já estava no lugar do gordo e o olhava com um sorriso nos olhos e lábios serenos.

- Importa-se?

- O quê? An?

- Importa-se que eu sente aqui?

- Ah! Não, claro que não. Se a visse em pé, cederia meu lugar. Uma mulher como você deve sofrer num ônibus lotado de malandros.

- Uma mulher como eu? Como, como eu?

Era a chance. O livro estaria aqui amanhã, essa oportunidade poderia se única.

- Bonita, cheirosa... Deliciosa, sem ofensa.

- Já pensou que essa casca é apenas uma fantasia para atrair homens como você?

- Homens como eu? E como eu sou?

- Inteligente, bonito, viril e heterossexual. Difícil encontrar tudo isso numa mesma pessoa.

Dali por diante a conversa foi ficando mais íntima, mais amigável. Ela não respondia nada diretamente, apenas o nome, Teresa, que coincidia com o que ele lia momentos antes: Teresa, a Filósofa, de Fernando Savater. Era o mote para a conversa se aprofundar, assim como o interesse de Ceraldo.

- O que você acha da gente descer no próximo ponto e tomar alguma coisa para nos conhecermos melhor?

- Estava torcendo que fizesse o convite.

Dali para um barzinho simpático que já começava a acender as luzes para a noite que se anunciava, não custou nada. Ele pediu um chope, ela um suco de limão, sem açúcar ou gelo. Ele pediu iscas de camarão, ela filé mal passado, sangrando ainda. Ele queria saber dela, ela parecia já saber tudo dele. A conversa fluía fácil. Ele era solteiro e morava só, ela não falava de seu passado. Ele gostava de esportes, futebol no sábado à tarde, ela caminhava muito, daqui para ali, de lá para acolá. Ele trabalhava num banco, ela tinha negócio próprio.

Passavam-se os chopes e os petiscos, ela não demonstrava interesse maior do que na conversa e o animava a beber. Até a terceira tulipa ele estranhou, depois desta, se entregou. Deixa o barco correr.

Chegou a um ponto em que já enrolava a língua, as palavras mais difíceis tropeçavam nos dentes antes de sair. Melhor marcar outro encontro, se a convencesse a uma noitada mais quente, passaria vergonha. Antes de pegar seu telefone, endereço ou apenas sugerir um cinema amanhã, Teresa pôs as mãos em seus ombros, fixou seus olhos nos seus, de modo que ele não pudesse desviar o olhar e a atenção. Não sorria, olhar sério, voz mais grave e baixa, mas de uma firmeza que aprisionava Ceraldo por inteiro:

- Preste atenção que só vou falar uma vez.

O rapaz retesou-se entre as mãos firmes de Teresa e da sisudez do timbre.

- Eu sou A Morte e vim te buscar. Amanhã você não verá a luz do dia.

Estaria suficientemente bêbado para virar motivo de chacota? Que brincadeira de mau gosto ela estava propondo? Não conseguiu protestar. Antes que a voz trôpega se fizesse, ela continuou:

- Na verdade, sou apenas uma assistente, você é minha primeira encomenda, desculpe o mau jeito. Eu deveria ter virado aquele ônibus e imprensar sua cabeça entre dois bancos, mas fiquei com pena de machucar aquela senhora com as duas crianças que estavam lá no fundo.

Falando para si mesma, um momentinho de devaneio:

- Acho que vou levar um esporro da chefa, hoje...

Ceraldo ensaiou um protesto, trazendo A Morte de volta ao assunto que a trouxe ali:

- Bom, já que vou ficar de castigo mesmo e ainda não me habituei a essa função de ceifadora, vou lhe dar a chance de um último pedido, assim, que nem nos filmes de bang-bang de antigamente.

As mãos dela já não eram gadanhos, mas mãos femininas em carinho. Já não lhe apertavam os ombros, afagavam as faces como a uma criança chorosa.

- Vamos lá pra casa?

Era efeito da bebida, a irresponsabilidade do porre, o temor da morte, a incompreensão do que se passava? Pouco importava. Estava com um tesão incontido por aquela morena de olhos rasgados e tez de índia. Queria aqueles cabelos curtos emaranhados em seus dedos enquanto se esforçasse para não falhar entre suas pernas.

- É esse seu último desejo? Quer morrer em casa?

- Apenas a primeira parte dele, o resto te conto na minha cama.

A Morte não é má nem boa, apenas necessária, lição que Teresa aprendera nas instruções antes dessa missão. Já que dera ao condenado o último pedido, que cumprisse sua palavra.

Ceraldo abriu os olhos pesados do álcool da noite passada, via a luz entrar pela fresta da cortina. Era a luz do sol! Teresa devia ser uma louca ou drogada com aquele papo de último desejo, uma fantasia sexual que funcionara, como funcionara. Que noite ela havia lhe dado!

Olhou a moça desnuda sob a coberta abrir os olhos devagarzinho, um sorriso tatuado nos lábios bem desenhados e o “bom dia” preguiçoso açodando seus sentidos.

- Então, não vai mais me matar?, não conteve o tom de ironia.

- Não, acho que vou pedir à chefa pra me mandar de volta à vida. Não havia conhecido esse lado bom da última vez que passei por aqui.

Teresa levantou-se num pulo, correu para o banheiro enquanto gritava:

- Vou falar com a chefa e volto à noite para morrermos juntos mais uma vez.

Encontro Estranho

Passava pouco das duas da madrugada quando Ambrósio estacionou o carro em frente à casa de Veraneide. Vinham de uma noitada com amigos comuns, onde se conheceram. De cara o rapaz se interessara pela beleza e espontaneidade de Veraneide, de quem não desgrudara por toda a noite.

Ela não cedeu aos seus encantos e insistência, mas permitiu que a levasse para casa, uma bela casa em estilo colonial num condomínio fechado, com jardins amplos e bem cuidados, segurança permanente e armada. Naquele sossego, Ambrósio viu a oportunidade ideal e final de fazer suas investidas. Desligou o motor, já virando-se para o lado a fim de olhá-la nos olhos, seguro que a um olhar profundo e meloso, daqueles que refletem franqueza e paixão, dificilmente as meninas resistiam. Encontrou, porém, não um olhar romântico e interessado, mas cenhos franzidos virados para o enorme canteiro que separava as duas pistas.

- Que foi? Que houve?

Ao mesmo tempo em que perguntava, virava a cabeça na direção do olhar da acompanhante. Em pé, de costas para eles, uns cinqüenta metros distante, um rapaz alto, vestindo uma bermuda azul e camiseta branca, andava de um lado para o outro sem desviar a vista da casa de dois andares e luzes apagadas.

- Quem é o cara?

- Não sei, mas me lembra o Angelim.

- Quem é Angelim?

- O ex-namorado da menina que morava ali.

- Ih! Já vi esse filme. O corninho tá achando que vai reconquistar a ex no meio da madrugada. Esses manés bebem umas e ficam românticos. – Sem perder a oportunidade, emenda – Têm que aprender a ser romântico o tempo todo, assim como eu.

- Ele sabe que não vai...

- Ele quem? Sabe que não vai o quê?

- O Angelim sabe que não vai reconquistar a Belza.

- Como é que cê sabe? Ela te falou?

- Ela não mora mais ali. Não mora mais em lugar nenhum.

- Comequié? Papo estranho...

- Ela morreu.

- Vixe! Se ela morreu, o que ele tá fazendo ali? Matando a saudade?

- Isso é que é estranho. Ela se matou porque não queria casar. As famílias insistiam, o Angelim não largava do pé dela. A única saída que arrumou para fugir da pressão, foi cortar os pulsos.

De repente Ambrósio sentiu que a noite cálida e estrelada tornara-se gélida, ou talvez fosse apenas o arrepio subindo pelo espinhaço até arrepiar a nuca.

- Cruz, credo! Quem se mata vai pro Inferno. – Se benzia enquanto falava.

A noite até podia não ter esfriado, mas o fogo em sua virilha sumira. Já virava-se para se despedir e marcar alguma coisa para amanhã, quando deu-se por Veraneide abrindo a porta.

- Peraí, não vai nem dizer tchau?

- Vou lá falar com ele.

- Peraí, peraí. E se ele estiver drogado? Se estiver armado a fim de fazer uma loucura ele também? Vai, não. Fica aqui.

Ela não lhe dava ouvidos, já estava do lado de fora e batendo a porta.

Droga! O que a gente não faz por uma mulher bonita? Se fosse embora agora, perderia qualquer chance de um encontro futuro. Desceu do carro, contornou-o rapidamente impedindo o caminho da garota.

- Tá legal, eu vou lá e digo a ele que você quer conversar. Assim eu protejo você caso ele tenha uma arma.

Garoto esperto. Fazia um favor e ainda vestia a armadura de cavaleiro protetor. Ponto para ele.

Sem responder com palavras, ela acenou positivamente com a cabeça.

Não podia dar pra trás. Sem muita firmeza, virou-se em direção a Angelim, a adrenalina misturando-se no sangue, fazendo o chão ficar mais macio sob os pés que se moviam contra a vontade do cérebro, devagar, hesitante. Deu uma olhadinha para trás na esperança de ela o chamasse de volta, o que não aconteceu. Onde fora se meter?

A cada passo, mais fria a noite ficava. Já imaginava urinando nas calças, tanto era seu temor.

Deu uma paradinha, respirou fundo, encheu-se de coragem. Que porra poderia acontecer? O moleque era um palito e não um rato de academia como ele, não daria nem para o começo caso engrossasse. Era apenas um fracote chorando a morte da namorada. Otário! Com tanta mulher solta por aí...

Ouviu um rumor de pés às suas costas. Virou-se de um pulo, quase trombando com Veraneide. Irritado, quase sussurrando:

- Pô! Não disse para esperar lá? Fica aqui!

Ela ficou, mas não o olhava. Fixava a vista no rapazola que já não ia e vinha. Estava parado, de costas para eles apenas dez metros à frente, olhar grudado na janela apagada do primeiro andar.

Ambrósio voltou a andar, agora encorajado. A presença de Veraneide o ajudara a quebrar a tensão em que se encontrava. Parou a um passo de Angelim e o chamou, “ei”. Nem um músculo se mexeu como resposta. Insistiu, “ô! Cara!”. Nada. Esticou o braço, apelaria para o toque, impossível ser ignorado. Mas seu dedo não encontrou nada. Angelim sumiu como a imagem de um televisor quando falta energia. Puf!

Ambrósio não gritou, o grito saiu vivo, por vontade própria, apenas um “ah!”, curto, seco. A mão recuou como se tivesse sofrido um choque elétrico. A cor de suas faces sumiu quase tão rápido quanto a imagem de Angelim. Apavorado, urinado, virou-se a jato pronto para correr para o carro e sumir dali para sempre, deu de cara com Belza nas roupas de Veraneide abraçada a Angelim, os dois olhando-o fixo, um sorriso malévolo nas pontas do lábios.

Encontrado pelos vigilantes do condomínio na manhã seguinte, catatônico, Ambrósio vive numa clínica psiquiátrica e é medicado após cada crise que tem ao ver alguém de calça jeans e camiseta branca.

Raquina régius

Era meio da manhã de domingo quando apareceu na ponta da rua principal de Nossa Senhora da Conceição o tílburi de capota vermelha, aro das rodas dourados, um luxo desconhecido na cidade e encoberto pelo pó da estrada.

Na boléia um homem muito alto, barbas brancas bem aparadas e pontudas sob o queixo, cabelos também brancos cobertos por impecável chapéu de copa alta. Pele também alva, embora avermelhada pelo sol seco do Planalto Central. Seus trajes, linho branco, destoavam do alaranjado da poeira. Ao lado do homem uma enorme gaiola de metal dourado como os aros, base circular, quase um metro de altura. Em seu interior três periquitos australianos, um azul, um verde e o terceiro, arroxeado,

Aquele conjunto ímpar chamava a atenção dos moradores modorrentos, da criançada serelepe e dos que saíam da missa sob o repique dos sinos. Em frente à igreja o cavalo preto parou sob o comando do homem. Este, tirando o chapéu, dirigiu a palavra a dona Hadilma, que varria os degraus.

- Simpática senhora, há uma estalagem nessa simpática cidade?

- Uma o quê, moço?

- Uma estalagem, pousada, hotel...

- An, sim, tem a pensão de dona Leócia. É só seguir reto e quebrar a segunda à dereita.

Enquanto a dupla conversava, a viatura foi cercada pela meninada curiosa com os bichinhos coloridos.

- Moço, arriscou um deles, quem pintou as curicas desse jeito?

- Ora, minha querida criança, esses nobres animais não são reles curicas e, sim, sagrados Raquinas regius indianos, pássaros raros e mágicos vindos do outro lado do mundo.

- Raquina réjus? Nunca ouvi falar.

- São seres raríssimos, os últimos três existentes no universo.

Dito aquilo e sabendo que a notícia espalhar-se-ia pelo lugarejo com a velocidade de notícia de morte, seguiu caminho rumo à pensão.

A viúva Leócia, com seu jeito pouco educado e nada higiênico, impressionada com a presença de insólita figura, cuidou de arrumar-lhe o melhor quarto, justo o que dava janelas para a feira livre. Coisa melhor o visitante não poderia querer.

Por duas moedas, o moleque Anilson levou sua única mala para o quarto, enquanto o homem encarregava-se da gaiola. Demorou-se no aposento apenas tempo suficiente para vestir outro terno de linho branco, lustrar os sapatos e acertar a barba com afiada navalha.

Com a gaiola na mão foi à feira. Sentou-se em um banco sob a marquise da bodega, pediu um refresco de gabiroba e esperou o assédio que sabia que viria. A algazarra das aves chamava o público aos poucos. Tímidos, mas curiosos, os moradores se aproximavam, um esperando que outro perguntasse do que se tratavam aqueles belos animais. Zé Codó, o mais conversador e sem senso de respeito à privacidade alheia, logo se fez presente à turba que já era considerável.

- Moço, quer vender os ajurucurau?

- Não, meu nobre cidadão. Primeiro, que não são ajurucuraus, mas Raquina regius sagrados. Esses nobres animais são de espécie em extinção, os últimos exemplares daqueles que já foram numerosos na longínqua Índia.

Não poderia esperar muito pelas perguntas. Iria direto à história tantas vezes repetidas e que era aumentada a cada parada, aumentando a admiração e cobiça dos que o ouviam. Se ninguém o interrogasse logo, teria que emendar a conversa, mas ali estava Zé Codó, maranhense conversador.

- São sagrados por quê? Por que eles tão acabando?

- Meu caro amigo, lhe contarei sua história. Na antiga Índia, um pobre senhor, já quase morto de fome, encontrou uma colônia desses nobres pássaros. Vendo ali uma oportunidade de ganhar algum trocado na venda deles, conseguiu aprisionar um bom número. Com bambu, construiu uma gaiola onde coubessem todos. Como já anoitecia, deixou os bichinhos descansando e foi dormir, sonhando com a ração que teria no dia seguinte após a venda.

Os olhos do público não despregavam do orador, alguns já puxavam caixotes para sentar, olhos não piscavam. Estavam entregues.

- Ao amanhecer, na boca da manhã, o pobre Raquina, esse era o nome do faminto indiano, espantou-se ao ver todos os pássaros parados em seus poleiros, todos virados na mesma direção. Esquisita situação, algo que jamais vira em seus muitos anos de vida. Virou o rosto na direção para que apontavam os bicos dos pássaros e viu a montanha onde diziam haver um tesouro de rubis, ouro e diamantes escondido por antigo marajá quando em fuga de seus inimigos.

Tesouro! Essa palavra sempre mexia com o imaginário dos simples.

Enquanto contava sua história, ao largo passava uma carroça conduzida por um negro alto, mal vestido, homem que não chamava a atenção, ainda mais quando algo muito interessante prendia a todos. A carroça era completamente coberta por lona escura.

- Sentindo um comichão na alma, o pobre Raquina resolveu seguir aquela direção. Por um momento esquecera do mercado onde venderia seus bichinhos multicores, estava intrigado com aquilo. Num farnel colocou as últimas frutas de que dispunha e seguiu rumo às montanhas. Tomou cuidado de andar em linha reta para não desviar-se da direção indicada pelos pássaros. Foi um dia inteiro de caminhada. Ao fim da tarde, quedou-se estafado e dormiu sob a copa de uma árvore.

O público agora já era incontável. Percebia entre os espectadores, pelos trajes, homens bem apessoados para o padrão local. Eram os ricos. A coisa estava cada vez melhor.

- Ao acordar, novamente viu os pássaros todos de cabeça baixa, bicos voltados para a mesma direção. Não se fez demorar, passou a caminhas no rumo indicado, passos mais largos que a subida permitia. Andou por algumas poucas horas, gaiola na mão e nada no embornal quando percebeu novo rebuliço e gritaria na gaiola. Os pássaros gritavam, todos com seus bicos voltados para uma pedra que cobria a entrada da gruta. Não havia dúvida, era uma indicação. Escondeu a gaiola entre arbustos e colocou-se dentro da gruta por uma passagem estreita atrás da pedra. Exatamente o que estão pensando, queridos ouvintes, ali estava uma enorme arca cheia até a borda de rubis, esmeralda e linda peças de ouro.

O homem da carroça coberta já sumia no fim da rua, o público deliciava-se.

- De volta à vila, Raquina construiu um castelo, comprou terras, plantou arroz e legumes e matou a fome de seu povo. Seus pássaros, porém, jamais apontaram a mesma direção ao amanhecer. Raquina imaginou que sua missão estava cumprida, não mais tinham algo a fazer por ele, por isso os vendeu, em trios, para aqueles que sonhavam com seus próprios tesouros.

A poeira deixada pela carroça do negro já se assentava.

- Por quinhentos anos, muitas fortunas foram feitas ao redor do mundo, mas, aos poucos, os pássaros foram morrendo por maus tratos ou de velhice, hoje restam apenas esses três que comprei em Marabá e há um mês eles vêm apontando uma direção para mim. Pelo rebuliço que fizeram hoje cedo, imagino que esteja perto de minha riqueza e os deverei passar adiante logo e que seja breve porque não tenho mais recursos para alimentá-los ou a mim mesmo. Ficarei rico em poucos dias e esses nobres animais de Shiva deverão trocar de mãos.

Todos boquiabertos, queriam mais e mais, porém, o visitante alegando cansaço, disse que deveria descansar para seguir o rumo da fortuna na manhã seguinte.

À noite, enquanto tomava sua sopa rala na pensão de Leócia, recebeu a visita do fazendeiro mais rico do lugar, seu Aldamiro, descendente direto dos primeiros bandeirantes que passaram por ali. O homem queria pagar qualquer preço que o visitante pedisse pelos seus pequenos pássaros. Suas economias começavam a mostrar uma diminuição, as filhas já estavam na idade de irem estudar em Goiás, as fazendas precisavam de melhorias... Os graciosos e barulhentos Raquinas regius seriam sua salvação.

O homem de linho branco regateou, colocou dificuldades, alegou ainda não poder vendê-los, ainda não achara seu tesouro, mas o homem insistia, até não ter mais o que dar para o visitante que não aceitava terras, mercadorias, apenas dinheiro, afinal essa era a tradição deixada pelo velho Raquina indiano.

Por fim, cedeu. De manhã consultaria os pássaros e, dependendo da resposta, fariam negócio. Esfregando as mãos, ansioso pelo negócio a ser feito, Aldamiro saiu quase correndo, precisava juntar todo o dinheiro que tinha e vender algumas vacas naquela noite.

Mal saiu Aldamiro, o pensionista recebeu a visita do prefeito, capitão Alcobaz. As propostas pelo pássaro aumentavam até não mais poder e cobriam as de Aldamiro. Sai Alcobaz, chega Hernildo e o leilão continua. O converseiro baixinho, quase um sussurro, se repetiu até quase meia noite. Percebendo que ninguém cobriria a proposta de Godofredo, o homem de branco manda Anilson atrás do fazendeiro com urgência.

Não demorou, lá estava o comprador com duas sacolas de couro transbordando de cédulas e moedas. Acordara o banqueiro e o fizera quase esvaziar o cofre do banco.

Feita a venda, o visitante lhe deu orientações de como alimentar as aves, como deveria evitar o excesso de sol e barulho, a que horas deveria fazer a consulta aos bichinhos e todos os demais cuidados a serem tomados.

Acompanhou Godofredo até a porta e ali ficou até vê-lo sumir na segunda esquina.

Numa urgência de médico, mandou que Leócia lhe fechasse a conta, pagou, levou sua arca para o tílburi que atrelou ao cavalo branco com a maestria e rapidez de poucos e pôs-se quase a galope para fora da cidade, pelo norte já que todos imaginavam que ele seguia para o sul por conta de seu caminho de chegada. Não dormiria e nem descansaria até estar muito longe, onde seu parceiro o encontraria numa carroça toda coberta e carregada com várias gaiolas com trios de periquitos australianos.